Tenho andado pela cidade. Não por pressa, nem por
falta do que fazer. Ando porque gosto de caminhar, observar, trocar palavras e
silêncios. Gosto de ouvir os sons da cidade — todos, exceto o barulho
insistente que escapa das caixas de som nas portas do comércio local. Caminho
para perceber o que ainda resiste e o que já se perdeu pelo caminho. Nessas
andanças, sou uma testemunha silenciosa da demolição e da reinvenção, da beleza
que insiste em permanecer e daquela que já virou lembrança.
Às vezes, passo por lugares tão familiares... e, de
repente, parecem estranhos. Como se tivessem mudado de roupa, de rosto — até de
alma. A cidade mudou. Ou melhor, se transformou. E mudou tanto... O verde que
antes havia já não “ave” mais — voou, como os pássaros que perderam suas
árvores.
Para quem não anda pelas calçadas há algum
tempo, o susto é inevitável: “Cadê aquela casa?” — caiu. “E a outra?” — virou
estacionamento. “Essa aqui?” — virou farmácia. “E aquela que era patrimônio?” —
também foi ao chão. Porque agora, o patrimônio não é o que se guarda, mas o que
se vende.
A cada passo, presencio mais uma demolição.
Esperava, confesso, uma restauração. Mas não. Vi as máquinas trabalhando,
operários no ritmo do vai e vem. Perguntei a um deles, talvez um encarregado: “Vai
restaurar?” E ele, sem rodeios, respondeu com frieza: “Não. É pra derrubar tudo. Pôr no chão!” Só consegui dizer: “Que pena…”
Na esquina onde o tempo parecia ter parado,
resistia o antigo Mercado Central, mais conhecido como Mercado Velho. Foi
idealizado na gestão do prefeito Paulo Campos. Quantas memórias cabem em um lugar assim? As escadas que subiam da rua levavam
a um mundo conhecido: lá dentro, o queijo curado e fresco, o polvilho do
Lourival, as verduras do Chico, a banca da Lucimar, o armazém do Joaquim
Cândido, a pastelaria do Brito, o açougue do Antero. Tinha barbeiro, com mãos
hábeis conduzindo a tesoura. Tinha cambista vendendo bilhetes de loteria. Do
lado de fora, na Coronel Vaiano, havia o bar do Osvaldo e o armazém do João Quito.
Meu pai, no início da década de 70, esteve ali, juntamente com minha mãe, numa
banca de salgados. Era um ponto de encontro para conversas que giravam em torno
de tudo: política, futebol, cotidiano.
Havia doce de leite na palha, amendoim na casca,
feijão a granel, a balança com seus pratos de metal e aquele eterno jogo de
pesos. Farinha vendida a quilo, linguiça pendurada no varal, frangos vivos
expostos ao lado das vassouras de palha. Frutas e verduras se misturavam ao
perfume das quitandas, ao cheiro de pastel — gairobas — ou guarirobas, tanto
faz o nome. O gosto amargo era inconfundível. e, para muitos, uma delícia. Mas
ficou o amargo do fim da história. "Quem não tem passado, não tem
memória."
Era tradição passar por ali, especialmente à tarde.
O trajeto era quase um ritual: entre frangos vivos, frutas, farinha e pequi, o
cheiro da pimenta nas garrafas de vidro — vermelha ou amarela, ambas ardendo na
boca. Tudo tinha sabor, história e presença. Acredito, sinceramente, que valeria a pena restaurar..., Mas é só o que penso.
A preservação de um patrimônio, ao longo do tempo, exige cuidados. A ferrugem e a corrosão se instalam, o tempo toma conta das paredes e do madeiramento, as administrações se esquecem... E tudo vai se desfazendo em pó. O tempo derruba o passado, decepa tradições, inaugura uma nova paisagem.
A cidade vai trocando suas lembranças por prédios
espelhados. Vai apagando histórias para escrever números. O progresso? Dizem
que é inevitável. Mas eu me pergunto: não valeria a pena preservar, para a
história contar? Eu conto histórias... Enquanto isso, sigo andando. Ainda
escuto. Ainda observo. Ainda guardo o que a cidade insiste em esquecer. Eu
conto histórias...