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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Quando o silêncio morava na rua


 


Outrora, a descida dessa rua nos levava em direção à ponte do Córrego do Sapo. Foram tantas as vezes que percorremos aquelas paradas — caminhos que nos guiavam ao lago do clube ou ao riacho que descia sereno do lago e se encontrava com o córrego. Ali pescávamos lambaris, traíras e lobós.

Seguindo à esquerda, estendiam-se as chácaras, as lagoas e o cerrado. Nelas cresciam inúmeras árvores frutíferas, formando um verdadeiro pomar de cores e aromas. Entre elas, destacavam-se, algumas de paus-brasil, plantados com orgulho e esperança. Mas o progresso chegou — e elas não foram protegidas e muito menos poupadas... Assim como não poupou o  pequizeiro que adornava a praça central — também ele, indefeso, desapareceu com o tempo.

Eram outros tempos… tempos sem pressa, sem tumulto. Frutas havia por toda parte — nos quintais generosos e os portões abertos, onde o perfume da natureza parecia nos convidar a ficar um pouco mais.

Hoje, essa mesma rua perdeu o encanto que um dia teve. O antigo calçamento de paralelepípedos cedeu lugar ao asfalto sem qualidade. Lá no alto, reinam a ostentação e a falta de educação. O que antes era silêncio e encanto transformou-se em barulho — um ruído insistente que irrita e sufoca a doçura do passado.

Eram tempos de cordialidade e amizade. Tive tantos amigos que por ali viviam — alguns ainda permanecem, embora nada seja como antes. Confesso, sou nostálgico: gosto de recordar, de reviver e compartilhar as histórias que testemunhei. Ah, aqueles tempos… o som que então fazia morada hoje se perdeu, restando apenas o ruído da poluição sonora.



sexta-feira, 24 de outubro de 2025

A magia de 1985: o ano em que aceleramos a 88 milhas por hora - Delorean, rock e sonhos.


 


No dia 21 de outubro completaram-se 40 anos da chegada do DeLorean… uma ficção que ainda hoje nos transporta para o território mágico da nostalgia e da imaginação. Aquele carro prateado atravessava as telas e os sonhos, símbolo de uma época em que a criatividade acelerava a 88 milhas por hora. Era ficção, sim — mas parecia uma promessa. A promessa de um futuro brilhante, movido a esperança, ousadia e aquele espírito aventureiro que só os anos 80 sabiam cultivar. Quatro décadas depois, basta ver aquelas portas se abrindo para sentir o coração bater no ritmo da saudade.

Em 1985, eu ainda não era maior de idade. No setembro daquele ano, completei 17. Não fui ao Rock in Rio — faltava idade, e mais ainda, dinheiro. Naquele verão, fui para a fazenda passar as férias com meu amigo Leonardo. Mas, pela televisão, entre os dias 11 e 20 de janeiro, assisti ao primeiro Rock in Rio fazer história (nunca mais teve outro igual). Foram 1,4 milhão de pessoas vibrando ao som de Queen, AC/DC, Iron Maiden, Rod Stewart, Yes, Scorpions, Ozzy Osbourne e tantos outros… O palco se transformou num altar da juventude, da liberdade, da música que jamais envelhece.


No mesmo ano, o mundo se unia em um coro de solidariedade com We Are The World, e em 13 de julho de 1985, o planeta parava diante do Live Aid. Idealizado por Bob Geldof e Midge Ure, o concerto reuniu artistas lendários como Sting, Phil Collins, Bryan Ferry, Paul Young, U2, Queen e tantos outros, em um gesto grandioso de humanidade. O objetivo era nobre — arrecadar fundos para combater a fome na Etiópia —, mas o resultado foi ainda maior: uma celebração global de empatia, música e esperança. E naquele palco histórico, o Queen eternizou sua performance, talvez a mais icônica de todos os tempos, mostrando que o rock também podia mudar o mundo.

Enquanto isso, o oceano revelava um segredo guardado por 73 anos: os destroços do Titanic eram encontrados, lembrando que nenhuma história se perde para sempre. E nas pistas, o Brasil acelerava junto com seus ídolos. Eu, apaixonado por Fórmula 1, colecionava figurinhas, revistas e pôsteres. Já tinha Senna como herói. Fumava John Player Special — o cigarro da Lotus preta e dourada. Em 21 de abril, Ayrton Senna conquistava sua primeira vitória na Fórmula 1, e Emerson Fittipaldi brilhava nas 500 Milhas de Michigan — o primeiro brasileiro a vencer na Fórmula Indy. Pioneiro, como sempre.



1985 também era feito de cor e exagero. Verde-limão, cereja, laranja. Um tempo de brilho, ousadia e ritmo. Ombreiras largas, calças de cintura alta e o biquíni asa-delta dominavam as piscinas e as praias. A televisão vivia o auge com Roque Santeiro, enquanto Tetê Espíndola encantava o país com Escrito nas Estrelas — uma canção que parecia dar voz ao espírito sonhador e poético daquela década.

Nas telas, a fantasia corria solta: De Volta para o Futuro, Os Goonies, Clube dos Cinco, A Cor Púrpura, O Feitiço de Áquila, Rocky IV e Rambo 2 mostravam que heróis vinham em todas as formas — e cabiam perfeitamente dentro do nosso imaginário. Nas rádios, ecoavam hinos eternos: Take On Me, Shout, Everybody Wants to Rule the World, Careless Whisper, Like a Virgin, The Power of Love — este último, trilha sonora perfeita para o voo do DeLorean.

E no Brasil, a trilha sonora não ficava atrás: Fábio Jr. com O Que É, O Que É, Chitãozinho & Xororó com Fotografia, Roupa Nova com Dona, Baby Consuelo com Sem Pecado e Sem Juízo, Guilherme Arantes com Cheia de Charme, Dr. Silvana com Serão Extra, Herva Doce com Amante Profissional e Kiko Zambianchi com Primeiros Erros. Era impossível não cantar, não dançar, não sonhar.



O rock nacional explodia em criatividade: Legião Urbana, Titãs, RPM, Ultraje a Rigor, Kid Abelha e Cazuza lançavam álbuns que se tornariam eternos. Era o grito de uma geração aprendendo a cantar suas verdades e questionar o mundo. Lá fora, Madonna estreava sua The Virgin Tour, enquanto o a-ha lançava Hunting High and Low, trazendo o som da Noruega para os rádios do mundo inteiro. Eu me tornei fã da banda — e, em 1989, tive a oportunidade de vê-los ao vivo no estádio do Palmeiras.


1985 foi um ano que condensou tudo: música, cinema, moda, coragem, sonhos — e aquele toque de ficção que o tempo transforma em pura saudade. 
Talvez por isso o DeLorean ainda nos emocione. Ele nunca nos levou ao futuro — ele traz o passado de volta, toda vez que lembramos que já vivemos um tempo em que tudo parecia possível, e o mundo girava embalado por uma canção chamada esperança.

 



terça-feira, 21 de outubro de 2025

Sons, cheiros e lembranças de Sampa


 


Quando os anos 90 começaram, eu tinha 21 anos — e São Paulo era, ao mesmo tempo, minha casa e meu mistério. A cidade se abria diante de mim como um livro vivo, cheio de histórias sussurradas pelo vento entre os prédios. Caminhava pelas ruas sentindo cada textura, encantado com os cantos da velha Sampa: vielas e travessas, metrôs e boulevards, bares e feiras, cantinas e padarias — até os famosos “come em pé” que davam vida às esquinas. Subidas e descidas, galerias, vinis, selos e jornais… cada detalhe tinha algo a contar.

O aroma do café das padarias se misturava ao cheiro de pão quente e à fumaça dos cigarros nos bares. As vielas guardavam segredos, as travessas escondiam descobertas. No metrô, passos apressados e risos contidos; nas calçadas e nos boulevards, o cheiro do café se confundia com a música que escapava do ambiente. Cada instante parecia um fragmento de eternidade. O tempo passou. Você mudou. Eu também. Mas as lembranças continuam vivas — pulsando nas ruas por onde caminhei, no som distante de um vinil, no perfume do café, nos pequenos detalhes que só quem amou esta cidade de verdade consegue sentir.

A memória daquela São Paulo — intensa, viva, cheia de sons, cores e cheiros — permanece. Mesmo com tudo diferente, ainda sinto o coração da cidade batendo sob meus pés. Cada esquina ecoa minha juventude. Quando fecho os olhos, ouço meu passo na calçada, sinto o aroma do café no ar e sorrio sozinho, lembrando da leveza e da liberdade dos meus vinte e poucos anos, no ritmo de cada esquina, de cada instante que o tempo guardou.

 




segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Os Tempos do Pequi – Tesouro do Cerrado


 


O cheiro de pequi volta a invadir as narinas. É sinal de que a temporada chegou. Nas esquinas, os vendedores se instalam, ajeitam as bancas improvisadas, e o amarelo dos frutos começa a colorir as feiras. O aroma forte se espalha pelas ruas e, de repente, todo mundo parece se lembrar de algo bom — da infância, do Cerrado, dos tempos de fartura.

Dizem que os primeiros a aparecer vêm de Minas Gerais. Logo chegam os do Mato Grosso e os de Goiás — esses, ah, os goianos! — mais carnudos, de polpa generosa e sabor marcante. O pequi é assim: não pede licença, toma conta do ambiente com seu perfume e desperta memórias adormecidas.

Houve um tempo em que a gente não esperava o fruto nas feiras. Ia buscá-lo direto no Cerrado, quando o mato ainda era verdejante e abundante. As árvores carregadas convidavam à colheita, e era uma verdadeira festa. Juntávamos sacos, latas e mais latas, e partíamos em grupo, rindo, conversando, lá íamos rumo ao cerrado e as terras vermelhas do sertão. Era uma celebração da natureza e da convivência. O mesmo acontecia com o cajuzinho — outro tesouro do mato. Eram outros tempos… tempos bons.


Os forasteiros que vieram de outras regiões, sem conhecer nossos costumes, costumavam zombar do goiano por seu amor ao fruto amarelo. Nas rodas de conversa, surgia a velha piada popular: “Quer pegar um goiano? Enche um buraco de pequi!” — brincadeira que, no fundo, só reforça o quanto o pequi faz parte da identidade e do coração do Cerrado Goiano.

Catar pequi era quase um ritual para os moradores da região. Por todos os lados das fazendas havia o fruto — bastava escolher a direção. Podia ser pelos lados do Montivíviu, da Aparecida do Rio Doce, das margens do Córrego Abóbora ou do Ribeirão do Meio. Na Igrejinha da Serra, na Capa Branca… em qualquer canto, lá estava ele: o pequi, com seus caroços dourados, espalhando perfume e lembranças.


Lembro-me bem das visitas dos parentes que vinham de São Paulo. Eles não conheciam o fruto. Quando provaram, ficaram encantados — não apenas com o sabor, mas com o costume de ir buscá-lo no mato. A experiência de catar pequi virou história repetida até hoje nas conversas de família. Falam com saudade dos “pequis do chapadão”, como se o aroma ainda flutuasse no ar.

Certa vez, lá pros lados do Ribeirão do Meio, adentramos a mata fechada com o pai e a mãe. Em meio à caminhada, acabamos nos perdendo dos outros amigos. Andamos e andamos até que, de repente, chegamos a uma casinha simples, escondida entre as árvores. Lá encontramos o senhor Rosalvo — um típico morador da roça, atencioso e receptivo. Logo fizemos amizade, e o pequeno sítio dele se tornou ponto de parada obrigatória em nossas idas ao mato — um lugar de acolhimento, café fresco e prosa boa. Com o tempo, todos os parentes de São Paulo passaram a conhecer o sítio e se encantaram com aquele cantinho cheio de simplicidade e histórias. Seu Rosalvo era um sujeito alegre, um “boa praça”, e um exímio contador de causos.


Nativo do Cerrado brasileiro, o pequi é uma joia da natureza. Seu nome vem do tupi e significa “casca espinhosa”. Está presente em vários estados — Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso — e é símbolo da culinária regional, especialmente nas mesas goianas e mineiras. Em Minas, Montes Claros carrega com orgulho o título de “Capital Nacional do Pequi”, celebrando há mais de trinta anos sua tradicional festa, que mistura cultura, música e o sabor único do fruto.

De sabor intenso e inconfundível — meio doce, meio apimentado —, o pequi exige respeito. Deve ser cozido, e sua polpa, comida com cuidado, roendo o caroço sem morder, pois os espinhos escondidos são traiçoeiros. Mas quem aprende o jeito certo, não esquece nunca mais.

Mais do que um alimento, o pequi é parte da alma do Cerrado. Um símbolo de resistência, sabor e memória — o gosto de um Brasil que ainda vive dentro da gente, entre o cheiro do mato, a fumaça do fogão a lenha e as histórias contadas ao redor da mesa. Arroz com pequi, frango com pequi… e até pequi sozinho — é bom demais.






Árvore símbolo do cerrado, patrimônio natural — e, claro, proibida por lei de ser cortada (mas quem liga, não é mesmo?). Agora, tudo o que nos resta é a foto... uma prova viva de que um dia na Praça da Matriz existiu um pé de pequi. Hoje não “ave” mais — virou só saudade e ironia...  






sexta-feira, 3 de outubro de 2025

O sonho perdido da simplicidade - quando bastava pouco.



De repente, em meio ao barulho e à pressa da vida urbana, nasce dentro de nós um sonho de simplicidade. E nos perguntamos: será apenas ilusão? Para que tantos copos de bebida alcoólica, tantas conversas vazias? Celulares sempre conectados, olhos presos às telas...




A vida poderia ser mais leve: um teto modesto, comida simples, uma boa companhia. No fundo, é disso que precisamos. Recordo noites em casas simples, com o fogão a lenha aceso. Entre o canto dos grilos e a calma da mata, à luz de uma lamparina, aprendíamos que a felicidade cabia nas coisas mais singelas.

Pessoas simples, de fala sincera. O fogo aceso, o peixe assando, a meia caneca de cachaça passando de mão em mão. Um sabor único, um calor que vinha daquela bebida, enquanto as conversas seguiam leves e serenas. Momentos assim ficaram gravados na memória como verdadeiros tesouros.



Mas logo a vida urbana nos chama de volta: o telefone toca, alguém dita um número, um nome, uma mensagem, uma postagem, uma urgência. No íntimo, porém, sabemos que não é disso que precisamos. O que buscamos é apenas viver — com a leveza e a despreocupação dos frangos ciscando no terreiro, sob a sombra generosa das mangueiras, ouvindo o canto das cachoeiras que deslizam sobre as pedras sem pressa, alheias ao tempo.

Entretanto talvez isso não passe de um sonho utópico. O rio do peixe, antes cheio de peixes, hoje está envenenado. O frango já não cisca no quintal: vive confinado em galpões, engordado à base de ração, abatido em trinta dias. Pessoa que vivem na roça e nem sabem o significado da natureza, meta, dados, foco, ‘money for money’... A simplicidade se perde, e o que resta é apenas a saudade de quando a vida podia ser mais humana.






quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Quando o tempo tinha outro ritmo


Houve um tempo em que a vida corria mais devagar, e os pequenos acidentes do cotidiano pareciam tragédias irreparáveis. Hoje, revisitados pela memória, brilham como joias guardadas no fundo de uma gaveta antiga.

Uma ficha, duas, três. Era o drama de ver as fichas escorregarem no orelhão e a ligação se interromper no meio da conversa. Silêncio. Acabou. O mundo despencava ali, no barulho seco da linha cortada. O tum-tum-tum soava mais cruel do que qualquer despedida.


O álbum estava incompleto; faltava apenas uma figurinha. Ninguém tinha para trocar, ela não saía, e o buraco permanecia lá, vazio sem ela.
O tempo passou, os pacotinhos já não chegavam mais, as trocas se desfizeram junto com a infância, e o buraco ficou ali, guardado na memória como uma saudade.


Riscava justamente o melhor lado LP, houve um tempo em que se ouvia o Lado A e o Lado B. O disco girava, e cada estalo era uma cicatriz na canção — um desastre inevitável gravado para sempre no vinil, mesmo esfregando álcool ou perfume na esperança de apagar o risco — que não saía; o dano estava gravado. Tive alguns episódios assim, mas um me marcou: o LP ao vivo do Roupa Nova. Justo no lado B, na música “Volta pra mim”, um risco profundo. A frustração foi tanta quebrei o disco. Depois, com a ansiedade de quem precisa recuperar um pedaço da própria memória, saí em busca de outro exemplar para comprar.




Na máquina de escrever, o suplício vinha no fim da página: datilografar linha após linha, até que, na última palavra, um deslize. Sem fita corretiva, só restava recomeçar. Havia nisso uma lição de humildade: reescrever é também aprender a perder.

Gravar músicas do rádio era um aprendizado de paciência: o dedo suspenso sobre o botão REC, na espera da melodia sonhada. Um exercício de fé. Mas, quando enfim começava, lá vinha o locutor com sua voz impostada: “dez e quarenta e cinco” — e tudo se perdia. Pior era quando a canção acabava e ninguém dizia o nome do cantor. E quando a fita K7 era mastigada pelo toca-fitas, o barulho do plástico engolido soava como choro.




Havia também o ritual das figurinhas de chiclete. Raspar devagar, com todo cuidado, e descobrir, no fim, que o decalque havia saído incompleto, faltando justamente uma perninha do bichinho. Um aprendizado sobre a frustração, doce e amargo ao mesmo tempo. A vida dava suas aulas de imperfeição em papel de bala.

E a televisão, nosso elo com o mundo. O pai, no telhado, girando a antena, gritava de cima:
— Melhorou? Lá embaixo, a resposta soava como uma crônica doméstica:

— O 5 e o 7 estão melhores, mas o 4 e o 13 pioraram. Nunca todos os canais ficavam bons ao mesmo tempo.

Não faz tanto tempo assim. Eu vivi esses episódios no final dos anos 70 e início dos 80. Para nossos filhos, tudo isso parece pré-história. Mas nós sabemos: era vida acontecendo. Pequenos dramas, grandes histórias e uma saudade que hoje chega leve, com gosto de chiclete sem sabor, mas cheia de lembranças. Para nós, foram pedaços vivos de uma época em que a vida se escrevia com simplicidade. Pequenos dramas, grandes alegrias. E, no fundo, memórias que ainda hoje, quando retornam, nos arrancam um sorriso cúmplice com o tempo.