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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A fazenda, amizade, o rock e a história


Fábio Trancolin

Chegou o final de ano de 1984, reunimos na casa do Júnior para a virada. E só juntando gente, alguns amigos, outros que nem sabíamos quem era, sabe aqueles caçadores de festas que veem a porta aberta e vão entrando.  Virou o ano, champanhe estourando, brinde feito... Banho em alguns, promessas feitas... E, assim vazou a madrugada... Alguns foram embora, outros esparramaram no sofá, cadeiras, e, até no chão tinha gente... Alguns observaram a aurora chegar ao ano novo... 


Tínhamos decidido que na manhã do dia seguinte, iríamos para fazenda, próxima á Lagoa do Bauzinho, onde o resto da família do Júnior tinha passado a virada. O Nacional Expresso saía as seis da matina, saímos correndo para não perder o ônibus. Ao chegar à Praça Rodrigues de Mendonça (a praça atrás da Igreja São Sebastião) as garotas montaram uma estratégia, a Eliana, Rosângela e a Raquel ficaram na espera de alguma carona, apareceram dois “carinhas” num Corcel II, e elas pediram para parar, eles se ofereceram para levá-las na rodoviária, elas gritaram, podem vir, e saímos de trás da árvore, eu, Júnior, Isaac Pires e o João Batista (o amigo que todos chamavam de Ki-suco), fazer o quê, apertamos os nove no Corcel, e lá fomos nós... Descemos na BR-452 e fomos caminhando pelo cerrado, até encontrarmos o Leonardo com o velho TL. Todos dentro do possante, e lá fomos seguindo o caminho do sol.


Chegamos à sede, felicidade geral, já estavam nos esperando para passarmos o dia, Seu João, Dona Deolinda, a Edilamar e o Adailton, Ronaldo, seu Joaquim carinhosamente chamado de “Risada” e o Gilmarzinho. Era uma terça-feira, então, seria só aquele dia na roça, fogão aceso desde o amanhecer... Almoço da Dona Deolinda, tudo de bom. O churrasco começou a ser preparado. No fundo do quintal, tinha um pé de limão galego e eu me tornei um especialista em caipirinha (o Leo adorava). O dia foi passando, final se aproximando, hora de voltarmos para a cidade. O Léo me fez uma pergunta, “você tem algo pra fazer lá?” As tuas aulas ainda não começaram, fica aí... E porque não, pensei e decidi que iria ficar... Eles avisaram lá em casa, e, assim, fiquei!


No dia seguinte, cinco da manhã, antes do sol aparecer o Léo, ‘Ki-suco’ e o ‘Risada ‘ estavam de pé no curral tirando leite. Eu acordava lá pelas seis, e fazia os afazeres da casa. A sede da fazenda era uma bela casa grande, sofisticada para roça, tinha energia, água encanada. TV, aparelho de som. Eu acordava e ligava a TV que naquela época antes de entrar no ar ficava com aquelas faixas e tocava músicas, tem três que não saem da memória, todos os dias tocava. ‘I Just called to say I Love You’ Steve Wonder, ‘Sobradinho ‘ Sá & Guarabira, e ‘Chuva de Prata’ Gal Costa. Lá pelas oito, vinham os três do curral com o leite tirado, a maior parte era para fabricação de queijo. O soro da sobra era misturado com farelo e alimentava os porcos. Também tinha uma criação de carneiros, que ‘batizamos’ ou “homenageamos” celebridades. Tinha o “Miro”, “Elba Ramalho”, “Alcione”, “Djavan”, “Alceu Valença” e a “Gal”... Alimentávamos a criação, partíamos para fazer o almoço (tarefa do Léo, ele conduzia as panelas), nos ficávamos no suporte. Como não poderia faltar a minha famosa caipirinha, colhia o limão no pé, e todos os dias, tinha um copo.



Depois do almoço alguns afazeres e, também, o momento do descanso, ficávamos jogando conversa fora, nas cadeiras da varanda, e lá pelas quatro da tarde, íamos apartar as vacas, pegávamos o “Lambari” o cavalo branco da roça, só tinha ele (morreu alvejado por uma bala perdida, tempos depois), as cachorras também iam, a Susie e a Babi. O gado guardado, apartado e tratado. Teve um período que um cidadão deixou por lá 300 cabeças de novilhas, cuidávamos, ainda bem que foi por pouco tempo, dava trabalho. No final da tarde era a hora da recreação, jogava-se ‘Malha’. (é um jogo onde se lançam discos de metal em direção a um pino com a intenção de derrubá-lo e/ou deixar a malha o mais próximo possível deste pino).  O Ki-suco roubava a cena, não pelo que jogava e, sim belas ‘besteiras’ que ele inventava. Depois, eu e o Léo sentávamos para jogar caixeta, (o Léo ainda tem o caderno onde ele anotava as partidas, o placar favorável a ele, de cada dez, eu perdia umas oito, ele jogava bem...). 


Certo dia estava escutando música, e o “Risada” me perguntou se eu já tinha ouvido os ‘Carreirinhos’.  Não, não conheço, respondi. Ele me disse, eles são bons, mas eles cantam muito rápido, eu acho que eles ficam ‘cansadinhos’ quando param, disse ele. Foi o ‘Juquinha’ (essa era a maneira que ele chamava o Júnior) que mostrou, quando ele aparecer por aqui pede para ele te mostrar. Quando o Júnior apareceu por lá, eu perguntei quem eram os ‘Carrerinhos’? Ele me mostrou... Ele colocava um LP do Tião Carreiro e Pardinho em alta rotação, e falava para o “coitado” que eram os filhos deles. Que maldade! E ainda pediu que eu não revelasse o segredo. Muita sacanagem...         
        

Hora da janta, fogão aceso e o aroma de fim de tarde invadia o ambiente, o Leonardo cozinhava muito bem, todos os filhos do Seu João e Dona Deolinda dominavam a arte da culinária. À noite, na varanda, cada um com seu cigarro aceso e as besteiras fluíam, eu fazia poema para a lua (em homenagem a uma determinada pessoa), o Ki-suco sempre tinha uma novidade e uma ‘molecagem’. Na hora de dormir, o seu Joaquim tinha um quartinho, e para lá se dirigia para ouvir o rádio de pilha e fumar o cigarro de palha (nada cheiroso). E nós ficávamos num quarto, com duas camas e um colchão no chão, a casa era grande, porém só naquele quarto tinha o rádio sintonizado na ‘Mundial’ do Rio de Janeiro, que nós ouvíamos até depois da meia-noite, e muita conversa, certa noite ao tocar ‘I can wait forever’ Air Supply, aconteceu algo, que o Léo, todas as vezes que me vê, faz questão de relembrar... O nome de alguém, escrito com bosta de vaca, na porteira que também marcou a minha passagem por lá é sempre lembrado por ele... Antes de dormir, cada um fumava o seu cigarro e jogava no canto do quarto, porém, teve um dia que por descuido, eu joguei um lençol naquele canto, as ‘bitucas’ foram arremessadas como sempre no mesmo lugar, pegou fogo, foi uma fumaceira danada, quase que eu causei um estrago. O lençol não deu para aproveitar, perda total. 


Um fato que aconteceu, quando contado, nos traz muitas risadas, mas, no dia foi muito doloroso (para o Léo é claro). Colocamos um novilho no curral, bicho arredio, nervoso e estressado. O Léo laçou o “brutu” com uma corda de nylon e passou pela cintura, pois o animal era de uma força tamanha. Nesse momento, entra o Ki-suco no curral, com um saco de aniagem em volta do corpo e de chapéu, parecia um espantalho, e gritava que ele era o ‘Etíope sul africano’ ou o ‘Sul coreano’ (não sabíamos de onde ele tirava essas maluquices) que veio dominar o animal. O ‘nelore’ quando viu aquela figura que vinha em sua direção, desembestou a correr e a puxar o Leonardo que estava de bermuda, a corda desceu cintura abaixo e passou por trás dos joelhos, queimando a perna dele... Foram muitos dias de sofrimento para ele, a pele ficou em ‘carne viva’... Hoje, rimos de tudo isso, mas, naqueles dias não teve graça nenhuma.


Outra coisa que marcou, foram algumas pintas que começaram a sair no meu corpo, estava todo marcado. Na análise do Leonardo, era problema no “fígado”, excesso de caipirinha e cerveja, então, fui proibido de ingerir bebida alcoólica, porém elas continuavam a aparecer e crescer, eu tive então que vir à cidade para ser examinado por um médico. Os exames foram feitos, e foi constatado que era alergia da banana-ouro que eu comi quase um cacho, dúvidas esclarecidas, voltei para fazenda. E a farra continuou. Num período que marcou a história, tanto da música quanto da politica nós estávamos no mato, mas conectados (a palavra certa seria ligados). No dia 15 de janeiro, o Tancredo Neves vencia Paulo Maluf no colégio eleitoral pelo voto indireto e se tornava presidente. E o Rock Rio entrava para história com um dos grandes eventos da década de 80. Naquele dia fizemos a maior festa na roça. E, nesse dia, nasceu o João Neto, o filho da Edilamar e do Adailton. 


Dois meses depois de férias na fazenda, tive que voltar. Mas, foi algo que marcou tanto, que é como se estivesse sentido o cheiro do almoço que o Léo caprichosamente fazia. O curral, o rego d’água, as lagoas e a estradinha que vinha da BR. Quando a “banana” da energia caía, e tínhamos que esperar o técnico que vinha da Maurilândia para levantar a “banana”... E foram várias, as vezes que isso aconteceu. O João “Anta”, vizinho que vinha jogar truco. E lembrando o rego d’água e as lagoas, certa vez o Seu Joaquim foi pescar e trouxe algumas traíras, chegou todo feliz com o pescado. E me mostrou, e fez questão de falar da maior e o trabalho que deu... E eu fui limpar e preparar, estava lavando e a força da água, o peixe escorregadio, ele foi por água abaixo... Eu saí correndo, e perdi a maior, depois fui apalpando... E consegui encontrar... Já pensou se eu perco logo essa... Parece coisa de mentiroso, mas, foi isso que aconteceu, “repesquei” a “dita”. E por falar em pescaria, o Jairinho apareceu por lá e ficou por alguns dias, era o pescador oficial, todos os dias no final da tarde saíam os dois, ele e o ‘Risada’ iam à busca das lagoas, e retornavam com a vasilha cheia de lambaris que faziam alegria antes da janta como tira-gosto. O Jairinho muito branco e, debaixo daquele sol de verão, ficava vermelho, certa vez passou por lá um amigo, o Luís Fernando, que deixou uma frase que marcou, “Uai, Leonardo quem é aquele “pudim” que tá pescando com o ‘Risada’?”. 



Numa tarde, o vizinho veio nos visitar e trouxe a filha, uma bela morena, o Leonardo, não estava, fizemos sala para as visitas, eu, o Divino (Tio do Leo) que também apareceu por lá, ofereci pinga, o Valmir aceitou e para ela fiz um suco, em determinado momento, ela perguntou “e” aquele rapaz, não está? ’ Eu e o “Divinão”, olhamos um para o outro, e respondemos, é, o rapaz ele não está, o rapaz foi na Lagoa do Bauzinho, mas, não demora, logo o rapaz volta... Eles foram embora e quando o Leo chegou contamos para ele da visita, e de não termos falado o nome dele para moça..., “mas como vocês fizeram isso, isso não se faz...” Ele não gostou, ficou chateado...  

O tempo passou, nunca mais teve um Rock Rio tão extraordinário quanto aquele, o Tancredo ganhou e não assumiu, deram a presidência de bandeja para o ‘dono do Maranhão’. O Léo foi embora para Uberlândia, o Ki-suco mora em Várzea Grande no Mato Grosso, Seu Joaquim está com quase 100 anos e morando com a Dona Deolinda e o Seu João, em Uberlândia. A Lagoa do Bauzinho até hoje não se emancipou. As músicas eu ainda escuto, e todas as vezes que tocar, Eu e Ela’, ‘Lua Nova’, ‘Caminhoneiro’ do Roberto Carlos, e a balada do Air Supply, o pensamento voará, levando-nos a relembrar de tudo aquilo, e mais uma vez nos emocionar com tudo aquilo que nos fez tão bem... E do jeito que está anotado no teu caderno Leonardo, está gravado na minha memória.





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