Parece que o tempo era marcado de outro jeito —  não era, eu sei, mas parecia que os ponteiros demoravam um pouco mais a dar a volta… Faz tanto tempo… Quanto? Mais de cinquenta anos, talvez um pouco mais. Naqueles dias, o relógio da Presidente Vargas permanecia lá, firme, observando e sendo observado. Seus ponteiros giravam no ritmo próprio da cidade, enquanto os poucos transeuntes passavam no vai e vem, sem que ninguém fosse realmente refém das horas. Lembro-me bem dele, erguido no meio da avenida como um guardião silencioso. Registrou tantas histórias até desaparecer, removido sabe-se lá por quê… e, com sua ausência, um pedaço inteiro da nossa paisagem se apagou.

De um lado, a estação rodoviária, com seus comércios tradicionais e aquele cheiro inconfundível de pastel misturado ao óleo diesel dos ônibus que aceleravam para sair. Os táxis — a maioria deles Corcéis — formavam uma fileira impecável. Lançado em 1968, o modelo conquistou o título de carro do ano três vezes (69, 73 e 79), e Raul Seixas eternizou o famoso “Corcel 73” em Ouro de Tolo: “Eu devia estar feliz, porque consegui comprar um Corcel 73…”. Do outro lado, as charretes cobertas, que o povo, entre riso e malícia, apelidava de “balainho de puta”.




Observando as fotos em destaque, estamos na Avenida Presidente Vargas, esquina com a Geraldo Jaime. O ano é 1974. A velha Rodoviária aparece como um portal de chegadas e partidas, ponto de encontro de histórias que começavam e terminavam ali. O hotel da esquina ainda resiste — mudou a fachada, mudou o dono, mudou o tempo, mas segue firme, como se guardasse a memória de tudo o que já viu passar.

E como mudaram os lados de lá e de cá… Quantas vezes a gente descia do ônibus e era justamente essa a primeira imagem que se abria diante dos olhos: a avenida escorrendo ladeira abaixo, tranquila, quase vazia, ainda despertando para o dia. Eu morei ali — duas vezes, aliás — no comecinho dos anos 70. E o trânsito? Quase nada. A própria fotografia entrega: poucos carros, passos lentos, outro ritmo de vida. Um tempo em que a pressa ainda não tinha chegado.

Subindo a Geraldo Jaime, ficava a Boa Compra, do seu Euclênio Faria: cama, mesa e banho… malas, tecidos… um pouco de tudo. Logo acima, a Casa Lacerda, do senhor Ivo Lacerda. Quantas vezes percorri aqueles corredores. Quantas compras que hoje parecem pequenas, mas que crescem dentro da memória quando lembradas assim… com saudade.


Descendo mais, estava o Peg-Pag União, do senhor Osmar, pai do meu amigo Juninho. Meu território diário de balas de goma, chocolates e pequenas compras. Foi ali que meu pai comprou minhas congas Alcolor — mais sofisticadas que as tradicionais, brancas e azuis. Ao lado ficava o depósito do João Uberaba: cimento, café, rapadura, feijão, querosene, sabão… um cheiro forte e denso, aquela mistura única de aromas que a memória nunca mais desaprende. Seu João vivia anotando alguma coisa no canto da mesa, enquanto o atendente — sempre cortês, o Sirlim, o “Campeão” — dominava o balcão com calma e precisão. E tinha também o japonês, presença constante, quase parte da paisagem, compondo uma cena que minha memória insiste em preservar nítida, intacta — como se o tempo, em vez de apagá-la, se ocupasse apenas de protegê-la.

Mais abaixo — embora a foto não mostre — ficava o Posto do Adolfo, sempre reconhecível pelo cheiro inconfundível de gasolina, óleo e, talvez, solupan… aquele aroma típico de lava jato, uma mistura de estrada e rotina, que impregnava o ar e fazia parte do nosso dia a dia. Os frentistas, panos no ombro, conversas rápidas… e aquele jeito de conhecer todo mundo pelo nome. Muita gente parava só para “dar uma olhada na água e no óleo”, mas acabava ficando mais um pouco, trocando dois dedos de prosa.  E na esquina oposta, a Mococa — Um ritual: de latões, conversas curtas e uma simplicidade que só o interior guarda. Isso tudo faz um tempinho… mais de cinquenta anos. Eu era menino. Mas lembro. Lembro porque cada passo que dei ali foi ao lado do meu pai — e certas memórias, quando guardam afeto, não desbotam jamais. Eu conto histórias, guardo memórias...