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domingo, 31 de agosto de 2025

31 de agosto de 1943: Um registro da história e da memória familiar


 


Na foto, está gravada à mão essa data, testemunho de um tempo que já soma 82 anos. Ali aparece nosso avô, Henrique Nogueira Duarte, mineiro de Patos de Minas, que no final da década de 30 cuidava com dedicação do campo de aviação de Rio Verde, então localizado onde hoje é o Parque de Exposições Agropecuário.

Foi nesse ambiente que, em janeiro de 1941, nasceu meu pai, Jairon Nogueira Duarte,  o último filho do “Henriquinho” Uma história curiosa, entre tantas contadas por ele, está a de que no próprio dia de seu nascimento um avião caiu no quintal de minha avó, derrubando o pé de limão que ela cultivava. 

O campo de aviação mais tarde foi transferido para onde está até hoje. E na década de 70, outro “Nogueira Duarte”, meu tio Anaetes, deu continuidade ao legado, assumindo o cuidado do aeroporto. Recordo com carinho as idas no final da tarde, dentro dos “fusquinhas” branco e azul que meu pai tinha. Subíamos a estradinha de areia que começava logo depois da ponte do Córrego do Sapo e passava pela porta do Clube Campestre. Naquele tempo, ali terminava a cidade. Depois era só cerrado preservado e horizonte aberto. Eram tempos em que a visita ao local, ao final da tarde, se transformava em verdadeira festa para a família, percorrendo a estradinha de areia rumo ao pôr do sol.

Atualmente, o aeroporto de Rio Verde leva o nome de Aeroporto General Leite de Castro, em homenagem ao brigadeiro e ministro da Guerra no governo Getúlio Vargas. Natural de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, o general faleceu em 1950. Ressalto que não teve ligação direta com a história ou com o desenvolvimento do município. Sem desmerecer a homenagem, trata-se apenas da minha opinião: acredito que esse cidadão provavelmente nunca chegou a conhecer a origem da cidade de Rio Verde.

Anos depois, chegou a ser apresentado na Câmara Municipal um projeto para dar ao aeroporto o nome de Henrique Nogueira Duarte. Embora tenha sido arquivado, permanece viva a memória de seu amor e dedicação por aquele lugar, que para nós sempre será lembrado como: “Campo de Aviação Henrique Nogueira Duarte.”

Às vezes, alguns nomes acabam sendo esquecidos, mesmo tendo contribuído de forma significativa para o desenvolvimento local e para a construção das páginas da história do município. Poderia citar inúmeras pessoas que ficaram no anonimato, enquanto outros foram lembrados em placas e homenagens, muitas vezes apenas por motivos de cunho político.





quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Preservar a memória é valorizar a história: um encontro com meu amigo de outrora.


 


Já fazia algum tempo que planejava essa visita. Nesta quinta-feira pela manhã, finalmente bati à porta do meu amigo de longa data, Dr. Vicente Guerra. Era para ser apenas um “oi”, daqueles encontros rápidos em meio à rotina corrida, mas acabou virando horas de boa conversa, dessas que nos fazem esquecer do relógio. Como diz a máxima: há momentos em que não perdemos tempo, e sim a noção dele.

Aos 90 anos, Vicente mantém a lucidez admirável de uma mente privilegiada. Nossa amizade atravessa quase meio século, e reencontrá-lo foi como abrir um livro repleto de histórias — páginas vivas da memória de Rio Verde.

Natural de Minas Gerais, ele conheceu a cidade ainda em 1953 e, em 1965, escolheu-a para viver ao lado da esposa, Dona Neuza, com quem construiu família e criou os filhos: Flávia, Adriana, Danielle, Fabiana, Vicente Filho e Marcelo.

Entre recordações, percorremos a Rio Verde dos anos 1970 — uma cidade pequena, de ruas curtas e limites ainda acanhados, mas pulsando com sonhos de crescimento. Amante dos esportes, Vicente foi um dos incentivadores para que o município abraçasse novas modalidades. Até então, predominava o futebol; vôlei, basquete e natação ainda não faziam parte da rotina da juventude local. Foi por meio de sua atuação que essas práticas começaram a ser implantadas na cidade.

Atuando também no Lions Clube e junto ao 2º BPM, ajudou a idealizar os inesquecíveis Jogos Abertos, quando colégios como Marins Borges, João Veloso do Carmo (Gigantão), Colégio Agrícola, Frederico Jaime, Colégio do Sol e Aplicação se enfrentavam em quadras lotadas. Era um tempo em que a Polícia Militar trazia árbitros da capital e fornecia bolas, redes, troféus e medalhas. Uma época que deixou saudade em toda uma geração. Ao fundo da memória, ainda se ouvem os gritos da torcida nas quadras disputadas.

Nossa conversa também nos levou à Doutrina Espírita, tema que tanto me inspira. Vicente recordou amigos que colaboraram com a difusão da caridade na cidade e sua própria atuação solidária, além da trajetória como médico cardiologista. Relembrei, inclusive, um episódio pessoal: em 1979, quando quebrei o braço, foi ele quem me atendeu no Hospital Santa Terezinha.

O tempo passou sem que percebêssemos. O relógio avançou, mas não importava. Porque não se perde tempo quando se está diante de alguém que nos é caro; perde-se apenas a noção dele.

A visita mostrou que preservar a memória é valorizar a história. Naquela manhã, o tempo passou despercebido — como se fosse possível resgatar a essência de uma época que marcou gerações. Ao me despedir, ficou a certeza de que essas conversas não podem ser adiadas. São encontros que alimentam a memória, fortalecem os laços e nos lembram de que contar histórias — e ouvir quem tem tanto a compartilhar — é uma das formas mais bonitas de preservar a vida.





quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Crônicas de uma cidade que cresceu - quando o mato se fez concreto: retratos de uma cidade em crescimento






As cidades são organismos vivos, em constante transformação. Elas se expandem, mudam de feições e adaptam-se às novas demandas sociais e econômicas, moldadas por fatores como o crescimento populacional e a migração. A chegada de novas pessoas modifica a composição da população, amplia a diversidade cultural e exige mais moradia, serviços e infraestrutura.

Minha percepção sobre distanciamento, limites e espaços urbanos vem de longe — dos tempos em que comecei a circular sozinho, ou com amigos de infância, por volta da metade da década de 1970. Naquela Rio Verde, os limites não iam muito além das poucas quadras que conhecíamos, e a cidade parecia caber inteira nos nossos passos.

Em 1987, deixei o Planalto Central e fui para São Paulo, minha cidade natal. Foram quase 12 anos longe. Quando voltei, não encontrei a mesma Rio Verde que havia deixado. Ela já havia rompido fronteiras, abertos para o país. Eu me lembrava da chegada dos sulistas, no início dos anos 1980, mas, naquela época, a cidade ainda não vivia uma grande expansão imobiliária.

Recordo-me de ter assistido, já de volta no início dos anos 2000, a um programa de TV que tentou mostrar o “melhor” da cidade, mas que talvez tenha causado mais impacto negativo do que positivo. Há coisas que, às vezes, é melhor guardar — não expor planos ou sucessos antes da hora. Nestes 25 anos desde o meu retorno, o crescimento foi avassalador. A expressão “aqui era tudo mato” ganhou novo sentido. Fazendas viraram bairros, condomínios fechados se multiplicaram — e, aqui, diga-se, existe um fascínio por eles.

A busca incessante pelo lucro, muitas vezes, ultrapassa os limites do bom senso, supervaloriza espaços e exclui boa parte da população, beneficiando apenas alguns. Quando eu morava em São Paulo e vinha passar férias aqui — ao todo, foram quatro vezes — meus amigos me diziam que eu vivia num lugar cheio de opções, oportunidades e diversões, enquanto aqui “não havia nada”. Eu respondia que havia, sim, algo que não se encontrava fora daqui: amizade, natureza, simplicidade e proximidade. O tempo passou. Hoje, a cidade tem o que eles queriam: mais movimento, mais gente, ônibus cheios e… distanciamento. Os relacionamentos rarearam, cruzo com pessoas que não conheço, e já não sei quem é meu vizinho. E, para completar, vive-se um clima de “por favor, não venha à minha casa”. Isso, sim, tem de sobra.

Não há como negar: o desenvolvimento avassalador chegou. O progresso se instalou e o futuro já mora aqui. O crescimento corre como rio caudaloso, impossível de deter. O progresso lança raízes profundas, como árvore que cresce em direção ao horizonte. A cada ano, quase 10 mil pessoas chegam, como novos ramos que se somam ao tronco vigoroso da cidade — quase uma Montividiu inteira que renasce anualmente em seu seio. Maior centro urbano do Sudoeste goiano, sua sombra protetora alcança 31 municípios e toca a vida de quase 1 milhão de habitantes.

Não sou daqui, mas foi aqui que minhas raízes encontraram morada. Rio Verde… terra que me acolheu como se sempre fosse minha. E quando me perguntam de onde sou, respondo sem pensar: sou uma pizza de pequi.

Foto: Pedro Antônio Tosta - "Dom Pedro"




segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Entre esquinas e lembranças, São Paulo em passos de saudade.


 




Às vezes me pego mergulhado em lembranças. Hoje, revi a mim mesmo, antes dos 20 anos, caminhando pelas ruas de São Paulo. Havia uma beleza única em andar pela cidade — cada esquina era uma descoberta, cada rua, um convite. Meu retorno ao grande centro me revelava novos lugares, novas possibilidades. Eram descobertas constantes: sensações, paisagens, emoções. A São Paulo do fim dos anos 80 tinha suas próprias magias.

Lembro-me de passar pelo lado direito da Rua Direita… As chuvas repentinas, o frio inesperado que insistia em aparecer. A jaqueta de couro, o All Star nos pés, os cigarros Free no bolso — marcas de uma identidade em construção. E ecoava em mim a voz de Belchior: “Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior...” (Rio Verde, Goiás…).

A Bela Vista pulsava em cafés nas esquinas, padarias com aromas que chamavam de longe. Conversas intermináveis na calçada da Enéas, madrugada adentro, sem pressa de ver o tempo passar. As ladeiras que pareciam não ter fim, a espera no ponto da Maria Carlota, da Radial, da Marginal… A Tobiaras na Esperança no sobe e desce e o número nunca aparece, essa expressão também valia para a  Embiruçu... A banca de jornal era um templo: livros, discos, revistas, pequenas janelas para o mundo. E os shows no coreto, no vão livre, faziam o coração acelerar ao compasso da cidade.

O cheiro da feira, de terça a domingo, era um espetáculo à parte: o peixeiro, o bucheiro, as bugigangas e quinquilharias. Frutas em abundância — pêssegos, limões, caquis, mamões, laranjas, mexericas, bananas, nectarinas. E, claro, o pastel de feira, sempre especial, de preferência o de pizza. Lembro até hoje do aroma: inconfundível, inesquecível. O chope na Deliciosa, o pão na Requinte, a baguete com sardela… pequenos rituais da juventude.

A Paulista acendia seus faróis, anunciando a chegada da noite. A Ipiranga, no cruzar das esquinas, era o ponto onde a história se misturava à rotina. Eu, do vidro do ônibus na Amador ou na pressa do metrô, observava a vida passar diante dos olhos, no vai e vem dos desconhecidos. E havia também a menina bonita do último banco do ônibus A.E. Carvalho/República, que eu esperava na Itinguçu só para vê-la… O tempo seguiu o seu curso, mas a vontade de voltar àqueles dias nunca me deixou.

 

 




sexta-feira, 15 de agosto de 2025

História de Tradição e Fé


 


Não sou devoto da religião católica, trago comigo os preceitos da Doutrina Espírita – kardecista por orientação de meu avô e de meu pai, que me iniciaram nesse caminho desde cedo. Sou kardecista por herança de afeto, por vínculos que vão além da crença: são memórias e ensinamentos passados de geração em geração. Sou contador de histórias, amante da cultura e guardião das lembranças que mantêm viva a chama da tradição.

Trago comigo o respeito as tradições e as religiões.   Hoje, 15 de agosto, celebra-se o Dia de Nossa Senhora da Abadia. Essa data me transporta ao passado, às lembranças da infância vivida numa fazenda, guardadas no baú das recordações. A memória me leva pela mão até o tempo em que eu era menino, na fazenda escondida no coração do cerrado. Era um lugar distante, muitas léguas adentro, para além do horizonte da terra vermelha do sertão. A fazenda ficava “pras bandas” do Caiapó, a vinte e duas léguas, passando por uma pequena corrutela que, na época, mal se firmava: Montividiu, que no meu tempo era pequena, mas hoje floresce como cidade de lavoura e progresso – hoje próspera no agronegócio.

E, como na canção que diz “vem andar e voa, vem andar e voa...”, eu “voava” na carroceria do caminhão, cabelo ao vento, olhos brilhando, a caminho de uma festa que cheirava a memória, festa que, até hoje, é símbolo de tradição.

Era agosto. As festas de Montividiu são carregadas de história e fé. Celebram Nossa Senhora D’Abadia, padroeira da cidade, num costume que atravessa quase 150 anos. A cidade se vestia de devoção, celebrando a padroeira que protege o povo e o campo. Uma mistura de reza e alegria, de cultura e sabor, de música e abraços.



O início dessa tradição remonta aos tempos em que a família Peres já vivia no Chapadão. Com a chegada de Carlos Barromeu Peres, que se estabeleceu na Fazenda da Tapera, cresceu também a devoção à Santa. Os moradores reuniam-se para rezar e pedir proteção. Em agradecimento às bênçãos recebidas, decidiram que, todos os anos, no dia 15 de agosto, realizariam uma grande homenagem à padroeira.

Eu, ainda menino, participei de algumas dessas festas, onde o cheiro da comida se confundia com o som da sanfona. Eram celebrações movimentadas, cheias de gente e sabor. A última vez foi em 2010, quando trabalhava como jornalista na equipe do deputado Padre Ferreira. Estava com meu amigo Wilson Mossoró. Enquanto o deputado cumprimentava os presentes, nós entrávamos pela cozinha – e que cozinha! Tachos no fogareiro desde a madrugada, arroz soltinho, feijão amassado na roseta, vinagrete colorido, macarrão grosso e almôndegas que pareciam pesar uns 300 gramas cada.

Tradição é assim: não se perde, apenas se fortalece, passando de geração em geração, mantendo viva a fé e a cultura de um povo. A tradição não se apaga, se acende; não se dispersa, se guarda. É um fio que nos liga ao passado e que costura no presente a fé e a cultura, para que as futuras gerações nunca esqueçam de onde vieram.




 



sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Volta à fazenda do tempo, a porteira sempre aberta





Já faz tanto tempo que não sei mais o que é ter férias… Faz tanto tempo que não sei o gosto das férias…Os meses saltam, os anos se acumulam, e o tempo, implacável, segue. Ele sempre correu na mesma velocidade, os ponteiros sempre giraram do mesmo jeito…, mas hoje a sensação é outra: De uns anos pra cá, a pressa dele ganhou outra cor, outro peso. Parece que a vida aperta o passo e escorre mais depressa pelos dedos. O que antes era um passo de prosa, agora é galope.

Às vezes me pego buscando onde foi que deixei acumular todo esse tempo… De vez em quando, me pergunto: onde foi que deixei o tempo acumular poeira? E, nessa procura, volto a um ponto distante, quando o relógio não pesava tanto e o dia se alongava macio. E, sem querer, encontro-me voltando… Voltando para um pedaço distante de mim, quando a vida cabia num dia, e um dia parecia não acabar nunca.

Me vejo, menino, caminhando ao encontro do sol, por uma estradinha de terra que levava a uma fazenda guardada no tempo. à fazenda que o tempo, caprichoso, resolveu guardar intacta em algum baú de lembranças. Já se vão quarenta anos… e, ainda assim, o cheiro da manhã e do entardecer continua vivo nas narinas. Sinto o perfume do cair da tarde no ribeirão que cortava a divisa… ouço, lá do fundo da memória, a música que vinha da estação na madrugada.

Era perto da mata, junto do ribeirão… só Deus e eu, no sertão. Sábado, segunda ou sexta — tanto fazia: na roça, não há calendário. Eu seguia rumo ao sol… Vida boa. Sapo caindo na lagoa, eu indo pelo caminho do meu sertão. Lambari arreado, pronto para buscar as vacas ou, quem sabe, fisgado na ponta do anzol, depois frito no fogão a lenha. Conversa jogada fora, fumaça subindo, pinga, cigarro e limão… a massa coalhada quebrando no latão, o cheiro da terra molhada, o abraço do chão.

E lá ia eu, no Nacional Expresso, cortando a rota da lagoa. Subidas e descidas… Até que o ônibus parava, e eu descia na entrada da porteira — sempre aberta, como se soubesse que eu voltaria… como se me esperasse desde o dia em que parti. “Léo, voltei… estou de volta”, quase sussurrei ao vento. “Bora, acende o fogo… cheguei. Liga o rádio…” E, no ar, o perfume do limão galego se espalhava, acendendo memórias. A saudade, caprichosa, abriu gavetas inteiras dentro de mim.









segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Rio Verde, 177 Anos... Meu chão de memórias, e eu me lembro...


 


Por Fábio Trancolin

Rio Verde completa 177 anos. Não nasci aqui — mas foi aqui que a vida me plantou — e talvez por isso meu olhar sempre tenha sido de encantamento. Cheguei em 1970. Naquele tempo, você, cidade pequena, completava seus 122 anos no 5 de agosto. No início de setembro, eu completava 2... Minhas lembranças vêm lá dos meus 4, 5 anos. Meu pai? Ah, esse sim era seu filho legítimo — foi ele quem nos apresentou a você. Com ele aprendi a chamar tuas ruas de casa.

Cresci na parte baixa da cidade, onde tudo acontecia. Naquela época, os limites de Rio Verde ainda eram acanhados, não iam muito longe — dali do Córrego do Sapo para frente, era só o cerrado tomando conta. Para além do córrego, era só mato. No Barrinha, o córrego corria livre, cercado pela vegetação farta, da nascente até a foz... até o momento em que se encontrava com o “sapo” e o abraçava.

A Vila Carolina, a Vila Amália surgiam discretas. Lá no alto, escondida entre as curvas da cidade, ficava a pequena e encravada Renovação, com suas ruas estreitas — morei lá, como morei em tantos outros cantos... O Parque Bandeirantes ainda dava seus primeiros passos. A Vila Maria, ah... essa parecia tão distante. O Bairro Popular — chamado, com pouco-caso, com desdém de “Vilinha” — e a Vila Borges terminavam no “Pitico”. O Jardim América e o Jardim Goiás mal passavam de algumas quadras — grandes, sim, mas pouco habitadas, pés de mamonas, lobeiras e carrapichos... Foi assim que eu te conheci, Rio Verde.

Lembro bem do tempo em que o céu anunciava a primavera com revoadas de tanajuras. Os quintais eram largos, frutíferos. Os portões viviam abertos — e isso não era descuido, era confiança. Tinha fruta em abundância de todo tipo: manga, jabuticaba, amora, mexerica, cajá, caju, goiaba... tudo brotava com fartura, como se a natureza soubesse da alegria que era ser criança ali. O chão era de cascalho, e o asfalto, presente em poucas ruas, ainda era um sonho distante em tantas outras.

Nas escolas, os alunos de calça caqui e camisa branca faziam fila para rezar e cantar o hino. As roupas no varal “quaravam” ao sol. Os portões abertos, as crianças soltas, os jogos livres, os risos...  O coração era leve, generosidade estava mais presente, tudo se acendia com naturalidade. Tudo era simples... Que saudade dos 'Jogos Abertos'!

Hoje, Rio Verde é outra. Tem outra cara... e é cara. Mais alta, mais larga, mais cheia de pressa. Cresceu, expandiu-se, transformou-se... Foi além do que os olhos de 1970 poderiam imaginar. Mas, para mim, aqui dentro, ela ainda é aquela cidade da minha infância. Ela ainda guarda o cheiro da terra molhada, o gosto da fruta colhida no pé, fruta orvalhada... o som das vozes que ecoavam livres pelas calçadas. Lá dentro, bem no fundo, aquela cidade da minha infância ainda vive — escondida nos cheiros, nos nomes de ruas que o tempo quase apagou (Douradinho, Lage), nos sons que o vento insiste em trazer de volta.

Parabéns, Rio Verde, pelos seus 177 anos. E obrigado por ter me adotado, por ter sido cenário da minha infância, e por me ensinar que “pertencer” vai muito além do lugar onde nascemos. E eu completo contigo um punhado de memórias que o tempo não leva.





sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O Bar e a Magia dos Anos 70 e 80.


 


Bastou olhar a foto para ser transportado — sem aviso — aos anos 70 e 80, no coração de uma São Paulo vibrante e nostálgica. O tempo pareceu dissolver, e os sentidos tomaram conta: o cheiro doce e gaseificado da Tubaína e da Gini, o tilintar das tampinhas rolando pelo chão, o baleiro girando devagar no balcão, o tabuleiro à espera do próximo freguês, a mesa de sinuca sempre ocupada ao fundo.

No ar, pairava uma mistura inconfundível: cheiro de cigarro, salgado frito e aquele aroma clássico dos bares antigos — limão espremido, rabo de galo no copo americano, chão encerado, vozes cruzadas. Era o cheiro da cidade.



Os botecos tradicionais de São Paulo não eram apenas bares — eram pequenos templos da convivência, guardiões de uma cultura boêmia que atravessava gerações. Muitos ainda estão de pé, com mais de meio século de histórias em suas paredes de azulejo, guardando a alma de uma cidade que sabia valorizar seus rituais.

O banco giratório fazia parte do cenário, assim como o cafezinho forte, servido em xícara de vidro, e o pingado obrigatório das manhãs. Meus tios — João, Moacir, Gilberto, José, Cláudio e Lando — eram frequentadores fiéis. Não iam só pela bebida, mas pela conversa, pelas discussões animadas sobre política, futebol, novela e vida. O bar era onde se vivia intensamente. Ria-se alto, brigava-se às vezes, mas sempre havia reconciliação — porque ali, todos pertenciam.




E se a conversa alimentava a alma, o cardápio cuidava do resto. Batata frita crocante, bolinho de carne, batata na conserva do vidro, bacalhau ou mandioca, pastéis dourados e sequinhos, espetinhos na brasa, sardinha e azeitona,  calabresa acebolada, porções de carne com batata e queijo derretido. Uma ode à simplicidade deliciosa.

Os clássicos da cozinha paulistana marcavam presença: virado à paulista, bife à parmegiana, feijoada fumegante, picadinho bem temperado e aquele torresmo que estalava ao morder. E o sagrado ritual do "PF" tinha seu calendário imutável:

• Segunda-feira: Virado à Paulista

• Terça-feira: Bife à Rolê

• Quarta-feira: Feijoada

• Quinta-feira: Macarronada — espaguete, lasanha, nhoque ou penne

• Sexta-feira: Peixe • Sábado: Feijoada outra vez — porque tradição boa merece repeteco

Mais do que lugares para beber, os botecos paulistanos eram redutos de memória. Cada detalhe — o balcão gasto, os cartazes desbotados, os garçons que sabiam o nome e o gosto de cada cliente — contava um pedaço da história da cidade.

Esses bares, com sua aura inconfundível, ainda vivem em mim. São parte de uma São Paulo que pulsa afeto, lembrança e sabor. Uma São Paulo que resiste — e que, com uma simples foto, ainda é capaz de me fazer voltar para casa.