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terça-feira, 2 de setembro de 2025

Flores e vozes: certifique-se de usar algumas flores no cabelo...



 

O mundo nunca deixou de mudar. Aprendi cedo que nada permanece igual — tudo se move, tudo se transforma. E foi dentro da Doutrina Espírita, que se tornou o alicerce da minha vida, que encontrei a explicação: a Lei do Progresso. Somos empurrados para frente — ora pela razão que ilumina, ora pelo coração que aprende a amar. Mesmo quando o orgulho e o egoísmo nos fazem tropeçar, a estrada continua e nos obriga a seguir. É a força que nos impele a crescer, mesmo quando resistimos. Entre quedas e aprendizados, a vida nos leva da simplicidade à perfeição.



Nasci em 1968. Naquele tempo, o mundo estava em ebulição. Nas ruas, os jovens gritavam contra guerras, sonhavam com justiça, experimentavam novas formas de ser. Eram tempos de protestos, rebeldias e sonhos. A juventude não aceitava calada as imposições; reivindicava direitos e inventava modos novos de viver. Flores no cabelo, músicas que embalavam utopias, a sensação de que era possível reinventar tudo.

Recordo a canção de Scott McKenzie, lançada pouco antes: “Se você estiver indo para São Francisco, certifique-se de usar algumas flores no cabelo...” Mais do que um convite, era uma prece vestida de música. Uma promessa de que a bondade podia florescer nas ruas, de que pessoas gentis se encontrariam para viver um verão de amor. Sinto como se fosse uma prece simples, mas cheia de esperança, um convite à gentileza, à fraternidade, à crença de que as ruas poderiam ser tomadas pelo amor.



Mais adiante, recordo outra melodia que atravessou gerações: “Pride (In the Name of Love)”, do U2, homenagem à coragem de Martin Luther King Jr., que enfrentou o ódio com a força do amor e no ano em que nasci, tentaram silenciar sua voz numa manhã de abril, mas não conseguiram. O corpo pode tombar, mas o espírito segue ecoando. E sem esquecer do Maior que esteve entre nós: um dia, Ele passou por aqui. Sua voz só falava de amor, seus gestos eram amor. Tudo que deixou permanece e sempre existirá. Talvez seja isso que a vida me ensine: a história muda, os cenários mudam, mas a essência é a mesma. É sempre sobre buscar liberdade, sonhar com um mundo melhor, acreditar que o amor é mais forte que qualquer escuridão.



De 1968 até hoje, tudo mudou. Eu mudei. O mundo mudou. Mas a certeza permanece: estamos todos em marcha, guiados pela mesma lei que não nos deixa parar — a Lei do Progresso. E, no fundo, cada passo é um convite permanente a colocar flores no cabelo da alma e seguir adiante, acreditando que, apesar de tudo, o amor continua sendo a única revolução verdadeira.

Setembro chegou. Venha ver a primavera pelas manhãs, através da janela lateral ou do muro dos vizinhos. O sol de primavera desperta a bondade nos campos. Não deixe de sonhar que a paz chegará e fará morada no quarto de dormir. A lição nos foi ensinada há muito tempo, quando alguém aqui esteve e plantou a semente. Sabemos de cor essa lição; não a esquecemos. Devemos ensinar e aprender, repetir o que foi dito há muito tempo atrás, mantendo viva a verdade do amor. “Se você estiver indo para São Francisco, ou seja, para onde for, certifique-se de usar algumas flores no cabelo...”



Seja em São Francisco ou em qualquer lugar do mundo, leve flores consigo, nem que seja apenas na memória ou no coração. E, neste dia da Kombi (2 de setembro), recordemos as velhas kombis floridas dos anos 60: pinte com flores a sua estrada e venha somar na construção de um mundo mais leve, colorido e melhor. Chegou setembro, chegou a primavera! O sol aquece, a paz chama e o amor pede passagem. No dia da Kombi, que tal lembrar as kombis florescidas dos anos 60? Pinte sua estrada com flores e ajude a fazer o mundo mais bonito.

 



segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Carta para o futuro - (colocada numa cápsula do tempo)





1º de setembro 2025.

Meu pai partiu aos 80 anos. Ainda me restam 23 para alcançar essa marca. Curioso… 23 é também a idade da minha filha caçula, hoje. E 23 anos… cabem num piscar de olhos, passam voando. Quase nem vi passar. Como disse meu pai uma vez — com aquele sorriso sereno e cansado —:  “Demorou, mas passou rápido.” Demorou. Mas passou. Hoje escrevo esta carta como quem lança uma garrafa ao mar. Eu vou guardá-la numa cápsula do tempo — para mim mesmo. Se tudo correr bem, se a vida permitir, abrirei em 2048, e voltarei a estas palavras. E, se eu já não estiver aqui… que pelo menos elas fiquem.

O Fábio de 2025 manda lembranças para o Fábio de 2048.

Espero que você esteja bem. Que tenha chegado até aqui com a mente lúcida, o coração tranquilo e as articulações funcionando — ou, ao menos, caminhando sem muito barulho. Porque, depois de certa idade, a gente vira um Fusca: o que importa não é o ano de fabricação, mas o estado de conservação. Mas, se nem tudo estiver tão bem assim, quero te lembrar de algumas coisas…

A vida muda. As pessoas mudam. Mas espero que você não tenha se esquecido de quem é. Nem de onde veio. Nem do que faz seu coração bater mais forte. Espero que ainda fale com seus amigos — ou, pelo menos, pense neles de vez em quando. Sei que você sempre guardou lembranças nas gavetas — físicas e da alma. E, se eu te conheço bem, elas devem estar ainda mais cheias agora: coleções, recortes, bilhetes, cheiros, silêncios. Que você tenha lido os livros das tuas estantes. Espero que você ainda sonhe. Não com sonhos de valsa — esses esfarelam, restando só o papel cor de maravilha —, mas com aqueles sonhos que dançaram contigo na juventude. Talvez nem todos tenham se realizado. Mas você sonhou — e isso sempre valeu a pena. E, quem sabe, até realizou alguns... ou muitos.

Espero que você ainda acredite no que sempre te moveu: a esperança. Sim, aquela esperança teimosa, que resistiu a tudo — aos medos, às perdas, às quedas. A mesma que andava de mãos dadas com a fé e com a caridade — esse trio silencioso que te sustentou nos dias mais duros. Espero que ainda tenha tempo para fazer algo pelo próximo. Que ainda encontre tempo para estender a mão a alguém. Que ainda sinta o chamado de fazer algo pelo outro, mesmo que pequeno — porque isso sempre foi parte de quem você é.

E, acima de tudo, espero que você ainda se comova com o céu — com o nascer do sol, com os entardeceres silenciosos, com a noite… seja ela bordada de lua ou despida de luz. Olhe para cima: ainda há um chão de estrelas à espera do teu olhar.  Nunca faltou um cachorro em casa; acredito que você tenha um — ou talvez mais —, pois esses anjos de quatro patas sempre protegem nosso ser e nossa alma. Acredito que uma música boa ainda te cause arrepios — daquelas que surgem do nada e reacendem lembranças esquecidas... Beatles, Elvis, Bee Gees e Roberto... Porque música boa não envelhece — ela permanece. E que o a-ha ainda te desperte todas as manhãs, com aquela batida que mistura juventude e eternidade. Que te lembre de quem você foi… e, sobretudo, de quem você ainda é.

E, se o brilho do seu olhar estiver opaco… talvez seja só catarata. Opere. Vai melhorar.
Mas, se for tristeza… escave. A luz ainda está aí dentro. Espero que, apesar de tudo, você ainda seja você. Ou, se tiver mudado, que tenha sido para melhor. Porque, no fim, é para isso que estamos aqui: para crescer, para evoluir, para aprender a amar melhor. E, mesmo que o caminho tenha mudado ao longo dos anos, que você nunca tenha perdido o rumo. Com carinho, Você. Hoje.




domingo, 31 de agosto de 2025

31 de agosto de 1943: Um registro da história e da memória familiar


 


Na foto, está gravada à mão essa data, testemunho de um tempo que já soma 82 anos. Ali aparece nosso avô, Henrique Nogueira Duarte, mineiro de Patos de Minas, que no final da década de 30 cuidava com dedicação do campo de aviação de Rio Verde, então localizado onde hoje é o Parque de Exposições Agropecuário.

Foi nesse ambiente que, em janeiro de 1941, nasceu meu pai, Jairon Nogueira Duarte,  o último filho do “Henriquinho” Uma história curiosa, entre tantas contadas por ele, está a de que no próprio dia de seu nascimento um avião caiu no quintal de minha avó, derrubando o pé de limão que ela cultivava. 

O campo de aviação mais tarde foi transferido para onde está até hoje. E na década de 70, outro “Nogueira Duarte”, meu tio Anaetes, deu continuidade ao legado, assumindo o cuidado do aeroporto. Recordo com carinho as idas no final da tarde, dentro dos “fusquinhas” branco e azul que meu pai tinha. Subíamos a estradinha de areia que começava logo depois da ponte do Córrego do Sapo e passava pela porta do Clube Campestre. Naquele tempo, ali terminava a cidade. Depois era só cerrado preservado e horizonte aberto. Eram tempos em que a visita ao local, ao final da tarde, se transformava em verdadeira festa para a família, percorrendo a estradinha de areia rumo ao pôr do sol.

Atualmente, o aeroporto de Rio Verde leva o nome de Aeroporto General Leite de Castro, em homenagem ao brigadeiro e ministro da Guerra no governo Getúlio Vargas. Natural de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, o general faleceu em 1950. Ressalto que não teve ligação direta com a história ou com o desenvolvimento do município. Sem desmerecer a homenagem, trata-se apenas da minha opinião: acredito que esse cidadão provavelmente nunca chegou a conhecer a origem da cidade de Rio Verde.

Anos depois, chegou a ser apresentado na Câmara Municipal um projeto para dar ao aeroporto o nome de Henrique Nogueira Duarte. Embora tenha sido arquivado, permanece viva a memória de seu amor e dedicação por aquele lugar, que para nós sempre será lembrado como: “Campo de Aviação Henrique Nogueira Duarte.”

Às vezes, alguns nomes acabam sendo esquecidos, mesmo tendo contribuído de forma significativa para o desenvolvimento local e para a construção das páginas da história do município. Poderia citar inúmeras pessoas que ficaram no anonimato, enquanto outros foram lembrados em placas e homenagens, muitas vezes apenas por motivos de cunho político.





quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Preservar a memória é valorizar a história: um encontro com meu amigo de outrora.


 


Já fazia algum tempo que planejava essa visita. Nesta quinta-feira pela manhã, finalmente bati à porta do meu amigo de longa data, Dr. Vicente Guerra. Era para ser apenas um “oi”, daqueles encontros rápidos em meio à rotina corrida, mas acabou virando horas de boa conversa, dessas que nos fazem esquecer do relógio. Como diz a máxima: há momentos em que não perdemos tempo, e sim a noção dele.

Aos 90 anos, Vicente mantém a lucidez admirável de uma mente privilegiada. Nossa amizade atravessa quase meio século, e reencontrá-lo foi como abrir um livro repleto de histórias — páginas vivas da memória de Rio Verde.

Natural de Minas Gerais, ele conheceu a cidade ainda em 1953 e, em 1965, escolheu-a para viver ao lado da esposa, Dona Neuza, com quem construiu família e criou os filhos: Flávia, Adriana, Danielle, Fabiana, Vicente Filho e Marcelo.

Entre recordações, percorremos a Rio Verde dos anos 1970 — uma cidade pequena, de ruas curtas e limites ainda acanhados, mas pulsando com sonhos de crescimento. Amante dos esportes, Vicente foi um dos incentivadores para que o município abraçasse novas modalidades. Até então, predominava o futebol; vôlei, basquete e natação ainda não faziam parte da rotina da juventude local. Foi por meio de sua atuação que essas práticas começaram a ser implantadas na cidade.

Atuando também no Lions Clube e junto ao 2º BPM, ajudou a idealizar os inesquecíveis Jogos Abertos, quando colégios como Marins Borges, João Veloso do Carmo (Gigantão), Colégio Agrícola, Frederico Jaime, Colégio do Sol e Aplicação se enfrentavam em quadras lotadas. Era um tempo em que a Polícia Militar trazia árbitros da capital e fornecia bolas, redes, troféus e medalhas. Uma época que deixou saudade em toda uma geração. Ao fundo da memória, ainda se ouvem os gritos da torcida nas quadras disputadas.

Nossa conversa também nos levou à Doutrina Espírita, tema que tanto me inspira. Vicente recordou amigos que colaboraram com a difusão da caridade na cidade e sua própria atuação solidária, além da trajetória como médico cardiologista. Relembrei, inclusive, um episódio pessoal: em 1979, quando quebrei o braço, foi ele quem me atendeu no Hospital Santa Terezinha.

O tempo passou sem que percebêssemos. O relógio avançou, mas não importava. Porque não se perde tempo quando se está diante de alguém que nos é caro; perde-se apenas a noção dele.

A visita mostrou que preservar a memória é valorizar a história. Naquela manhã, o tempo passou despercebido — como se fosse possível resgatar a essência de uma época que marcou gerações. Ao me despedir, ficou a certeza de que essas conversas não podem ser adiadas. São encontros que alimentam a memória, fortalecem os laços e nos lembram de que contar histórias — e ouvir quem tem tanto a compartilhar — é uma das formas mais bonitas de preservar a vida.





quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Crônicas de uma cidade que cresceu - quando o mato se fez concreto: retratos de uma cidade em crescimento






As cidades são organismos vivos, em constante transformação. Elas se expandem, mudam de feições e adaptam-se às novas demandas sociais e econômicas, moldadas por fatores como o crescimento populacional e a migração. A chegada de novas pessoas modifica a composição da população, amplia a diversidade cultural e exige mais moradia, serviços e infraestrutura.

Minha percepção sobre distanciamento, limites e espaços urbanos vem de longe — dos tempos em que comecei a circular sozinho, ou com amigos de infância, por volta da metade da década de 1970. Naquela Rio Verde, os limites não iam muito além das poucas quadras que conhecíamos, e a cidade parecia caber inteira nos nossos passos.

Em 1987, deixei o Planalto Central e fui para São Paulo, minha cidade natal. Foram quase 12 anos longe. Quando voltei, não encontrei a mesma Rio Verde que havia deixado. Ela já havia rompido fronteiras, abertos para o país. Eu me lembrava da chegada dos sulistas, no início dos anos 1980, mas, naquela época, a cidade ainda não vivia uma grande expansão imobiliária.

Recordo-me de ter assistido, já de volta no início dos anos 2000, a um programa de TV que tentou mostrar o “melhor” da cidade, mas que talvez tenha causado mais impacto negativo do que positivo. Há coisas que, às vezes, é melhor guardar — não expor planos ou sucessos antes da hora. Nestes 25 anos desde o meu retorno, o crescimento foi avassalador. A expressão “aqui era tudo mato” ganhou novo sentido. Fazendas viraram bairros, condomínios fechados se multiplicaram — e, aqui, diga-se, existe um fascínio por eles.

A busca incessante pelo lucro, muitas vezes, ultrapassa os limites do bom senso, supervaloriza espaços e exclui boa parte da população, beneficiando apenas alguns. Quando eu morava em São Paulo e vinha passar férias aqui — ao todo, foram quatro vezes — meus amigos me diziam que eu vivia num lugar cheio de opções, oportunidades e diversões, enquanto aqui “não havia nada”. Eu respondia que havia, sim, algo que não se encontrava fora daqui: amizade, natureza, simplicidade e proximidade. O tempo passou. Hoje, a cidade tem o que eles queriam: mais movimento, mais gente, ônibus cheios e… distanciamento. Os relacionamentos rarearam, cruzo com pessoas que não conheço, e já não sei quem é meu vizinho. E, para completar, vive-se um clima de “por favor, não venha à minha casa”. Isso, sim, tem de sobra.

Não há como negar: o desenvolvimento avassalador chegou. O progresso se instalou e o futuro já mora aqui. O crescimento corre como rio caudaloso, impossível de deter. O progresso lança raízes profundas, como árvore que cresce em direção ao horizonte. A cada ano, quase 10 mil pessoas chegam, como novos ramos que se somam ao tronco vigoroso da cidade — quase uma Montividiu inteira que renasce anualmente em seu seio. Maior centro urbano do Sudoeste goiano, sua sombra protetora alcança 31 municípios e toca a vida de quase 1 milhão de habitantes.

Não sou daqui, mas foi aqui que minhas raízes encontraram morada. Rio Verde… terra que me acolheu como se sempre fosse minha. E quando me perguntam de onde sou, respondo sem pensar: sou uma pizza de pequi.

Foto: Pedro Antônio Tosta - "Dom Pedro"




segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Entre esquinas e lembranças, São Paulo em passos de saudade.


 




Às vezes me pego mergulhado em lembranças. Hoje, revi a mim mesmo, antes dos 20 anos, caminhando pelas ruas de São Paulo. Havia uma beleza única em andar pela cidade — cada esquina era uma descoberta, cada rua, um convite. Meu retorno ao grande centro me revelava novos lugares, novas possibilidades. Eram descobertas constantes: sensações, paisagens, emoções. A São Paulo do fim dos anos 80 tinha suas próprias magias.

Lembro-me de passar pelo lado direito da Rua Direita… As chuvas repentinas, o frio inesperado que insistia em aparecer. A jaqueta de couro, o All Star nos pés, os cigarros Free no bolso — marcas de uma identidade em construção. E ecoava em mim a voz de Belchior: “Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior...” (Rio Verde, Goiás…).

A Bela Vista pulsava em cafés nas esquinas, padarias com aromas que chamavam de longe. Conversas intermináveis na calçada da Enéas, madrugada adentro, sem pressa de ver o tempo passar. As ladeiras que pareciam não ter fim, a espera no ponto da Maria Carlota, da Radial, da Marginal… A Tobiaras na Esperança no sobe e desce e o número nunca aparece, essa expressão também valia para a  Embiruçu... A banca de jornal era um templo: livros, discos, revistas, pequenas janelas para o mundo. E os shows no coreto, no vão livre, faziam o coração acelerar ao compasso da cidade.

O cheiro da feira, de terça a domingo, era um espetáculo à parte: o peixeiro, o bucheiro, as bugigangas e quinquilharias. Frutas em abundância — pêssegos, limões, caquis, mamões, laranjas, mexericas, bananas, nectarinas. E, claro, o pastel de feira, sempre especial, de preferência o de pizza. Lembro até hoje do aroma: inconfundível, inesquecível. O chope na Deliciosa, o pão na Requinte, a baguete com sardela… pequenos rituais da juventude.

A Paulista acendia seus faróis, anunciando a chegada da noite. A Ipiranga, no cruzar das esquinas, era o ponto onde a história se misturava à rotina. Eu, do vidro do ônibus na Amador ou na pressa do metrô, observava a vida passar diante dos olhos, no vai e vem dos desconhecidos. E havia também a menina bonita do último banco do ônibus A.E. Carvalho/República, que eu esperava na Itinguçu só para vê-la… O tempo seguiu o seu curso, mas a vontade de voltar àqueles dias nunca me deixou.

 

 




sexta-feira, 15 de agosto de 2025

História de Tradição e Fé


 


Não sou devoto da religião católica, trago comigo os preceitos da Doutrina Espírita – kardecista por orientação de meu avô e de meu pai, que me iniciaram nesse caminho desde cedo. Sou kardecista por herança de afeto, por vínculos que vão além da crença: são memórias e ensinamentos passados de geração em geração. Sou contador de histórias, amante da cultura e guardião das lembranças que mantêm viva a chama da tradição.

Trago comigo o respeito as tradições e as religiões.   Hoje, 15 de agosto, celebra-se o Dia de Nossa Senhora da Abadia. Essa data me transporta ao passado, às lembranças da infância vivida numa fazenda, guardadas no baú das recordações. A memória me leva pela mão até o tempo em que eu era menino, na fazenda escondida no coração do cerrado. Era um lugar distante, muitas léguas adentro, para além do horizonte da terra vermelha do sertão. A fazenda ficava “pras bandas” do Caiapó, a vinte e duas léguas, passando por uma pequena corrutela que, na época, mal se firmava: Montividiu, que no meu tempo era pequena, mas hoje floresce como cidade de lavoura e progresso – hoje próspera no agronegócio.

E, como na canção que diz “vem andar e voa, vem andar e voa...”, eu “voava” na carroceria do caminhão, cabelo ao vento, olhos brilhando, a caminho de uma festa que cheirava a memória, festa que, até hoje, é símbolo de tradição.

Era agosto. As festas de Montividiu são carregadas de história e fé. Celebram Nossa Senhora D’Abadia, padroeira da cidade, num costume que atravessa quase 150 anos. A cidade se vestia de devoção, celebrando a padroeira que protege o povo e o campo. Uma mistura de reza e alegria, de cultura e sabor, de música e abraços.



O início dessa tradição remonta aos tempos em que a família Peres já vivia no Chapadão. Com a chegada de Carlos Barromeu Peres, que se estabeleceu na Fazenda da Tapera, cresceu também a devoção à Santa. Os moradores reuniam-se para rezar e pedir proteção. Em agradecimento às bênçãos recebidas, decidiram que, todos os anos, no dia 15 de agosto, realizariam uma grande homenagem à padroeira.

Eu, ainda menino, participei de algumas dessas festas, onde o cheiro da comida se confundia com o som da sanfona. Eram celebrações movimentadas, cheias de gente e sabor. A última vez foi em 2010, quando trabalhava como jornalista na equipe do deputado Padre Ferreira. Estava com meu amigo Wilson Mossoró. Enquanto o deputado cumprimentava os presentes, nós entrávamos pela cozinha – e que cozinha! Tachos no fogareiro desde a madrugada, arroz soltinho, feijão amassado na roseta, vinagrete colorido, macarrão grosso e almôndegas que pareciam pesar uns 300 gramas cada.

Tradição é assim: não se perde, apenas se fortalece, passando de geração em geração, mantendo viva a fé e a cultura de um povo. A tradição não se apaga, se acende; não se dispersa, se guarda. É um fio que nos liga ao passado e que costura no presente a fé e a cultura, para que as futuras gerações nunca esqueçam de onde vieram.




 



sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Volta à fazenda do tempo, a porteira sempre aberta





Já faz tanto tempo que não sei mais o que é ter férias… Faz tanto tempo que não sei o gosto das férias…Os meses saltam, os anos se acumulam, e o tempo, implacável, segue. Ele sempre correu na mesma velocidade, os ponteiros sempre giraram do mesmo jeito…, mas hoje a sensação é outra: De uns anos pra cá, a pressa dele ganhou outra cor, outro peso. Parece que a vida aperta o passo e escorre mais depressa pelos dedos. O que antes era um passo de prosa, agora é galope.

Às vezes me pego buscando onde foi que deixei acumular todo esse tempo… De vez em quando, me pergunto: onde foi que deixei o tempo acumular poeira? E, nessa procura, volto a um ponto distante, quando o relógio não pesava tanto e o dia se alongava macio. E, sem querer, encontro-me voltando… Voltando para um pedaço distante de mim, quando a vida cabia num dia, e um dia parecia não acabar nunca.

Me vejo, menino, caminhando ao encontro do sol, por uma estradinha de terra que levava a uma fazenda guardada no tempo. à fazenda que o tempo, caprichoso, resolveu guardar intacta em algum baú de lembranças. Já se vão quarenta anos… e, ainda assim, o cheiro da manhã e do entardecer continua vivo nas narinas. Sinto o perfume do cair da tarde no ribeirão que cortava a divisa… ouço, lá do fundo da memória, a música que vinha da estação na madrugada.

Era perto da mata, junto do ribeirão… só Deus e eu, no sertão. Sábado, segunda ou sexta — tanto fazia: na roça, não há calendário. Eu seguia rumo ao sol… Vida boa. Sapo caindo na lagoa, eu indo pelo caminho do meu sertão. Lambari arreado, pronto para buscar as vacas ou, quem sabe, fisgado na ponta do anzol, depois frito no fogão a lenha. Conversa jogada fora, fumaça subindo, pinga, cigarro e limão… a massa coalhada quebrando no latão, o cheiro da terra molhada, o abraço do chão.

E lá ia eu, no Nacional Expresso, cortando a rota da lagoa. Subidas e descidas… Até que o ônibus parava, e eu descia na entrada da porteira — sempre aberta, como se soubesse que eu voltaria… como se me esperasse desde o dia em que parti. “Léo, voltei… estou de volta”, quase sussurrei ao vento. “Bora, acende o fogo… cheguei. Liga o rádio…” E, no ar, o perfume do limão galego se espalhava, acendendo memórias. A saudade, caprichosa, abriu gavetas inteiras dentro de mim.









segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Rio Verde, 177 Anos... Meu chão de memórias, e eu me lembro...


 


Por Fábio Trancolin

Rio Verde completa 177 anos. Não nasci aqui — mas foi aqui que a vida me plantou — e talvez por isso meu olhar sempre tenha sido de encantamento. Cheguei em 1970. Naquele tempo, você, cidade pequena, completava seus 122 anos no 5 de agosto. No início de setembro, eu completava 2... Minhas lembranças vêm lá dos meus 4, 5 anos. Meu pai? Ah, esse sim era seu filho legítimo — foi ele quem nos apresentou a você. Com ele aprendi a chamar tuas ruas de casa.

Cresci na parte baixa da cidade, onde tudo acontecia. Naquela época, os limites de Rio Verde ainda eram acanhados, não iam muito longe — dali do Córrego do Sapo para frente, era só o cerrado tomando conta. Para além do córrego, era só mato. No Barrinha, o córrego corria livre, cercado pela vegetação farta, da nascente até a foz... até o momento em que se encontrava com o “sapo” e o abraçava.

A Vila Carolina, a Vila Amália surgiam discretas. Lá no alto, escondida entre as curvas da cidade, ficava a pequena e encravada Renovação, com suas ruas estreitas — morei lá, como morei em tantos outros cantos... O Parque Bandeirantes ainda dava seus primeiros passos. A Vila Maria, ah... essa parecia tão distante. O Bairro Popular — chamado, com pouco-caso, com desdém de “Vilinha” — e a Vila Borges terminavam no “Pitico”. O Jardim América e o Jardim Goiás mal passavam de algumas quadras — grandes, sim, mas pouco habitadas, pés de mamonas, lobeiras e carrapichos... Foi assim que eu te conheci, Rio Verde.

Lembro bem do tempo em que o céu anunciava a primavera com revoadas de tanajuras. Os quintais eram largos, frutíferos. Os portões viviam abertos — e isso não era descuido, era confiança. Tinha fruta em abundância de todo tipo: manga, jabuticaba, amora, mexerica, cajá, caju, goiaba... tudo brotava com fartura, como se a natureza soubesse da alegria que era ser criança ali. O chão era de cascalho, e o asfalto, presente em poucas ruas, ainda era um sonho distante em tantas outras.

Nas escolas, os alunos de calça caqui e camisa branca faziam fila para rezar e cantar o hino. As roupas no varal “quaravam” ao sol. Os portões abertos, as crianças soltas, os jogos livres, os risos...  O coração era leve, generosidade estava mais presente, tudo se acendia com naturalidade. Tudo era simples... Que saudade dos 'Jogos Abertos'!

Hoje, Rio Verde é outra. Tem outra cara... e é cara. Mais alta, mais larga, mais cheia de pressa. Cresceu, expandiu-se, transformou-se... Foi além do que os olhos de 1970 poderiam imaginar. Mas, para mim, aqui dentro, ela ainda é aquela cidade da minha infância. Ela ainda guarda o cheiro da terra molhada, o gosto da fruta colhida no pé, fruta orvalhada... o som das vozes que ecoavam livres pelas calçadas. Lá dentro, bem no fundo, aquela cidade da minha infância ainda vive — escondida nos cheiros, nos nomes de ruas que o tempo quase apagou (Douradinho, Lage), nos sons que o vento insiste em trazer de volta.

Parabéns, Rio Verde, pelos seus 177 anos. E obrigado por ter me adotado, por ter sido cenário da minha infância, e por me ensinar que “pertencer” vai muito além do lugar onde nascemos. E eu completo contigo um punhado de memórias que o tempo não leva.





sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O Bar e a Magia dos Anos 70 e 80.


 


Bastou olhar a foto para ser transportado — sem aviso — aos anos 70 e 80, no coração de uma São Paulo vibrante e nostálgica. O tempo pareceu dissolver, e os sentidos tomaram conta: o cheiro doce e gaseificado da Tubaína e da Gini, o tilintar das tampinhas rolando pelo chão, o baleiro girando devagar no balcão, o tabuleiro à espera do próximo freguês, a mesa de sinuca sempre ocupada ao fundo.

No ar, pairava uma mistura inconfundível: cheiro de cigarro, salgado frito e aquele aroma clássico dos bares antigos — limão espremido, rabo de galo no copo americano, chão encerado, vozes cruzadas. Era o cheiro da cidade.



Os botecos tradicionais de São Paulo não eram apenas bares — eram pequenos templos da convivência, guardiões de uma cultura boêmia que atravessava gerações. Muitos ainda estão de pé, com mais de meio século de histórias em suas paredes de azulejo, guardando a alma de uma cidade que sabia valorizar seus rituais.

O banco giratório fazia parte do cenário, assim como o cafezinho forte, servido em xícara de vidro, e o pingado obrigatório das manhãs. Meus tios — João, Moacir, Gilberto, José, Cláudio e Lando — eram frequentadores fiéis. Não iam só pela bebida, mas pela conversa, pelas discussões animadas sobre política, futebol, novela e vida. O bar era onde se vivia intensamente. Ria-se alto, brigava-se às vezes, mas sempre havia reconciliação — porque ali, todos pertenciam.




E se a conversa alimentava a alma, o cardápio cuidava do resto. Batata frita crocante, bolinho de carne, batata na conserva do vidro, bacalhau ou mandioca, pastéis dourados e sequinhos, espetinhos na brasa, sardinha e azeitona,  calabresa acebolada, porções de carne com batata e queijo derretido. Uma ode à simplicidade deliciosa.

Os clássicos da cozinha paulistana marcavam presença: virado à paulista, bife à parmegiana, feijoada fumegante, picadinho bem temperado e aquele torresmo que estalava ao morder. E o sagrado ritual do "PF" tinha seu calendário imutável:

• Segunda-feira: Virado à Paulista

• Terça-feira: Bife à Rolê

• Quarta-feira: Feijoada

• Quinta-feira: Macarronada — espaguete, lasanha, nhoque ou penne

• Sexta-feira: Peixe • Sábado: Feijoada outra vez — porque tradição boa merece repeteco

Mais do que lugares para beber, os botecos paulistanos eram redutos de memória. Cada detalhe — o balcão gasto, os cartazes desbotados, os garçons que sabiam o nome e o gosto de cada cliente — contava um pedaço da história da cidade.

Esses bares, com sua aura inconfundível, ainda vivem em mim. São parte de uma São Paulo que pulsa afeto, lembrança e sabor. Uma São Paulo que resiste — e que, com uma simples foto, ainda é capaz de me fazer voltar para casa.





quinta-feira, 24 de julho de 2025

Em pequenas atitudes demonstramos nossas preocupações com o amanhã


 


Lembra da música “O Amanhã?” — “Como será o amanhã? Responda quem puder...” — E eu lhe pergunto: como será? Você saberia responder?

O que estamos fazendo com a nossa terra-mãe? Já parou para pensar que é por meio das pequenas atitudes que mudamos o mundo? Se você ainda não notou, comece a fazer um pouquinho e, sem que perceba, estará fazendo um montão.

Estamos atravessando um momento em que tudo parece descartável — se brincarmos, até o ser humano é descartável! O nosso lixo mudou, mas a nossa atitude, não. O que você faz com seu lixo eletrônico? E com as pilhas e baterias dos três celulares que você tem?

Quando se joga fora um papel de bala, uma bituca de cigarro ou mesmo um copinho plástico, essas ações podem parecer insignificantes — mas não são. Vamos imaginar a população de Rio Verde: somos cerca de 250 mil. Em Goiânia, quase um milhão e meio de pessoas... Se cada um jogar um único papel de bala ou uma bituca, é assustador. Ao final de cada dia, serão toneladas de lixo. Muito lixo!

Se estivéssemos seguindo o princípio da boa educação — de jogar o lixo no lugar certo — não haveria tantos bueiros entupidos. A rotina dos garis, nesse vai-e-vem constante, seria menos estafante e muito mais produtiva. Você já parou para pensar quanto se gasta e se desperdiça em uma construção? Quanta areia e cimento descem pelas “bocas de lobo”? Isso acarreta um grande problema: os alagamentos, o acúmulo de dejetos e outras consequências mais... Sem contar as pessoas que, com suas mangueiras, todas as manhãs, nas portas de casas e comércios, jorram água ralo abaixo... Sem comentários sobre essa atitude insana.

Certa vez ouvi alguém comentar que, no futuro, haveria guerra por causa da falta de água. Que, em certos países, a água valeria mais do que a gasolina. Ainda há tempo... Já parou para pensar que tudo está relacionado ao princípio das pequenas atitudes? Algumas cidades já adotaram o processo de coleta seletiva, mas ainda é pouco. Nas escolas onde isso ocorre, o número é tão pequeno que nem entra nas estatísticas. É muito pouco. Mas esperamos que, através do pouco que se faz, as crianças de hoje possam se conscientizar de que o problema é sério — e que, com pequenas atitudes, mudaremos esse quadro.

Faça a sua parte. Não espere pelo governo, nem pelo seu vizinho. Comece com o seu exemplo, e outros irão fazer o mesmo. Lembre-se: o discurso ajuda, mas é o exemplo que contagia. Se tivéssemos feito isso há vinte anos, hoje tudo estaria bem diferente. Mas o “se” pertence ao passado... Esqueça.

Ainda há tempo.

Roberto Carlos, em uma de suas músicas escrita em 1979, que defende o meio ambiente, dizia: “Quem briga com a natureza envenena a própria mesa.”

Como será o amanhã? Responda quem puder..., Mas, do jeito que está indo, fica fácil de responder.



sexta-feira, 18 de julho de 2025

Ainda estou esperando na porta





Nos meus ouvidos, hoje, surgiu uma canção do Fábio Jr.: “Muito cacique pra pouco índio, muito papo e pouco som, pessoas querendo ser o que não são…” De repente, parecia que aquela letra falava mais do hoje do que do ontem. Sim… cacique demais. E eu pensei: sim… cacique demais. Som? Tem muito. Alto, agressivo, mas sem melodia. Barulho, ruído, ecos de gente que fala demais e sente de menos. Música mesmo… está raro.

E as pessoas? Estão fora do tom. Superficiais. Só pele e capa. Capas bonitas, caras, mas frágeis… capas que escondem e omitem detalhes que ninguém mais sabe cuidar. Vidas rasas, conversas rasas, sorrisos de superfície. Capas que ocultam cansaços, dores, vazios. Capas que disfarçam uma essência que, talvez, já nem saibam onde guardar. Como diz um amigo: “Galinha que anda com pato morre afogada.” É isso… quem se perde de si mesmo acaba engolido pelo mundo raso.

Cadê a essência? Restou apenas um aroma vago, um olor que se dissipa rápido demais… E rápido demais também estão indo alguns amigos. Tenho me despedido de gente boa cedo demais. Um a um, silenciosos, deixando suas xícaras de café pela metade e seus sorrisos emoldurados na memória de um porta retrato. Tá… eu sei… não se discute com o Plano Maior. Tudo segue a ordem silenciosa do universo. No verso e na prosa da vida, sigo contando histórias. Porque contar também é um jeito de não deixar partir.

Lembro de manhãs que nos faziam felizes sem que percebêssemos. Lembro de entardeceres cheios de gente, cheios de vida. Lembro do sorriso de alguém que acendia o dia. E sigo… caminho, ouço vozes — algumas reais, outras minhas — no diálogo silencioso comigo mesmo. Tenho me perguntado tanto… e tenho respondido pouco. O que está acontecendo? Hoje, as mesas estão cheias de louças e vazias de presenças. Gente conectada a telas, mas ausente no olhar. Caminho, ouço vozes que já não estão aqui e, num diálogo mudo comigo mesmo, pergunto: o que aconteceu com o mundo?

Eu ainda estou esperando na porta… esperando alguém voltar. Lembro das noites com a vitrola chiando baixinho, da churrasqueira improvisada no quintal — um buraco na terra, lenha queimando devagar enquanto as conversas se alongavam. Air Supply embalava a madrugada no motorádio: “I can wait forever…” Eu posso esperar para sempre…, mas sempre, eu sei, não é todo dia. Ainda estou esperando na porta.

 





terça-feira, 15 de julho de 2025

Carta ao menino de Kichute – Quero ser grande!


 


Naquele ano, eu completei dez anos. 1978. Era ano de Copa do Mundo, e o Brasil inteiro parecia respirar futebol. Eu, menino, colecionava figurinhas e começava a descobrir o mundo mágico da bola. Estudava pela manhã; o grupo escolar ficava ao lado de casa. Terceiro ano primário. Saía correndo da aula como quem foge de um mundo sério demais para a infância, ansioso por despir o uniforme da escola — a tradicional calça caqui e a camisa branca — e vestir meu verdadeiro traje de aventuras: o short surrado, a camisa verde do Palmeiras — símbolo de uma paixão que não cabia no peito pequeno — e, nos pés, o Kichute, já desbotado de tantas corridas e dribles inventados. Era com essa vestimenta que eu me sentia eu mesmo, inteiro, menino.



Lá ia eu, de coração leve e pernas rápidas, para a quadra do Tiro de Guerra. Aquele era meu território sagrado, onde a bola era o centro do universo e o tempo se resumia no riso dos amigos e no som seco da redonda batendo no muro. Ali, eu parecia imbatível. O mundo podia ser grande e confuso, mas, naqueles momentos, eu era maior que o mundo. Era o universo mágico de Bobby, onde bastava um gol para fazer a vida inteira valer a pena. Toninho do Palmeiras...

À tarde, a casa se enchia de uma calma que hoje parece coisa rara. Meu pai, sentado na poltrona, assistia ao jornal com aquele ar sério que só os adultos carregam. Minha mãe, na cozinha, comandava os aromas que escapavam das panelas, enchendo o ar de afeto e tempero. Eu, entre cadernos e lápis, me esforçava para terminar os deveres da escola. Essa era minha única preocupação, minha única responsabilidade. Nenhuma conta, nenhum boleto. Apenas a tarefa de manter os cadernos em dia e a certeza — tão simples e tão grande — de que eu queria crescer. Ah, como eu queria ser grande.

Emmanuelle eu conhecia apenas dos cartazes no Cine Bagdah, misteriosos e proibidos como portais para um mundo que eu ainda não podia atravessar. Quero ser grande... Fora isso, tudo parecia dentro da mais perfeita normalidade: o sol se pondo devagar, bicicletas riscando a rua de terra, o cheiro de pão recém assado vindo do armazém de alguém. A vida era simples. E, na simplicidade, morava uma felicidade que eu ainda não sabia nomear.

Cresci. Vieram os 20, os 30, os 40… passaram os 50. A vontade de crescer se perdeu pelo caminho. No lugar dela, nasceu outra — a vontade de voltar. Mas crescer é natural; voltar, não. Só se volta pela memória, essa máquina do tempo sem engrenagens, movida a lembranças. De Volta para o Futuro… O DeLorean só existe na ficção. No mundo real, restam-nos as memórias — e, às vezes, elas bastam. Aqui estou eu, com mais de meio século nos ombros (não estou envelhecendo; estou me tornando um clássico), para lhe dizer: crescer é inevitável; voltar, não.



Meus pais envelheceram. Naquele tempo, eram mais jovens do que eu sou hoje. Meu pai já partiu, deixando na casa um silêncio novo e uma saudade que não envelhece. Meus filhos também cresceram. Já voaram do ninho, já constroem seus próprios mundos. E eu, que um dia tive cabelos da cor das asas de uma graúna, hoje carrego fios embranquecidos, mais próximos da plumagem de uma garça branca.

O menino de Kichute e bola debaixo do braço ainda mora aqui dentro. De vez em quando, ele me visita nos sonhos e me lembra de coisas quase esquecidas: o cheiro da quadra de cimento quente, o som da bola quicando, a sensação de que o mundo inteiro cabia na tarde de uma terça-feira qualquer. A infância se foi, mas deixou um eco — suave, persistente — um sussurro que, quando fecho os olhos, ainda posso ouvir.



quinta-feira, 10 de julho de 2025

Gentileza gera gentileza








Dias atrás, recebi um vídeo que falava sobre gentileza. Bastou apertar o play para que eu fosse levado, sem pressa, a um outro tempo… aos dias da boa vizinhança, quando gentileza não era virtude rara, mas um jeito simples de existir, os tempos de quintais grandes, cheirando a café passado na hora e bolo saindo do forno, onde a boa vizinhança não era discurso bonito, mas prática cotidiana.

E, sem perceber, fui transportado no tempo… Eram tempos em que portões e corações estavam sempre abertos,  as portas viviam entreabertas e as janelas, sempre com cortinas balançando ao vento. Os vizinhos se chamavam pelo nome e entravam sem bater, trazendo junto um sorriso, uma prosa. Tempos de verdadeiros parceiros e amigos, dos vizinhos que eram quase família. Dos favores trocados sem perguntas, sem interesses — só pela alegria de ajudar. Uma xícara de açúcar emprestada aqui, um punhado de café acolá… E havia sempre um sorriso, de quem dava e de quem recebia.

Na roça, se alguém matava um porco ou uma vaca, não demorava para que a fumaça da lenha denunciasse o cozido no fogão a lenha e, pouco depois, surgisse alguém na cerca com um embrulho de papel pardo: “Separei um pouco pra vocês.” Era assim… o que se tinha, dividia-se. Porque ali, o sabor era maior quando partilhado. Eram gestos simples, mas carregados de afeto, respeito e uma sabedoria silenciosa: o que temos só tem valor quando é dividido.

A gentileza estava nas pequenas coisas — no bom-dia sincero, no aperto de mão firme, no prato de comida deixado no portão de quem precisava, no cheiro de pão quentinho deixado à porta de quem precisava, no calor de um abraço apertado que não media tempo nem pressa. Era uma herança sem escritura, passada de pai para filho, como a lição mais preciosa que alguém poderia deixar: cuidar uns dos outros.

Hoje, talvez nos falte essa simplicidade que tornava o cotidiano extraordinário. Talvez seja hora de resgatar o costume de dividir, de olhar para o lado, de estender a mão sem perguntar por quê. Talvez seja hora de abrir as janelas de novo, de deixar o aroma da gentileza invadir cada esquina, cada casa, cada coração. Quem sabe seja hora de resgatar isso. De lembrar que gentileza não é luxo nem exceção. Pequenos gestos, quando somados, podem tornar o ordinário importante. Porque gentileza não custa nada…, mas muda tudo.

Meu pai costumava dizer: “Nunca esqueça. Ajude na simplicidade. Seja num ato pequeno ou grande, mas sem esperar nada em troca. Ajude apenas pelo fato de ajudar.” Talvez essa seja a essência que o mundo anda precisando reencontrar. E talvez seja exatamente isso que o mundo precise: mais gente disposta a transformar pequenos gestos em grandes mudanças.




segunda-feira, 30 de junho de 2025

Nota de Pesar Verde


 



É com profunda tristeza e decepção que comunicamos o falecimento do pé de pequi, plantado com tanto simbolismo na Praça da Matriz. O pequizeiro — árvore símbolo do Cerrado — é conhecido por sua copa frondosa, que pode atingir até 12 metros de altura. Mas este jamais crescerá. Infelizmente, o que ali existia não se tornará sombra, nem abrigo, nem flor. Não existe mais. Fica a pergunta, que ecoa no vazio deixado pelos galhos ausentes: era realmente necessário o corte?

A legislação brasileira proíbe o corte de pequizeiros, salvo em casos muito específicos — como árvores mortas, doentes ou em áreas destinadas a obras de utilidade pública — e sempre com a devida autorização dos órgãos competentes. Será que alguma dessas condições se aplicava neste caso? É apenas uma pergunta. Um questionamento legítimo. Necessário.

Hoje, resta-nos o silêncio. Perdemos mais do que uma árvore. Perdemos um símbolo. Perdemos um pedaço do Cerrado. Uma promessa de natureza viva, ali mesmo, no coração da cidade... É uma pena, lamentamos... 






sexta-feira, 13 de junho de 2025

Lagoa Santa, 40 anos depois.


 

A inesquecível viagem dos alunos do Colégio do Sol em 1985 virou lenda entre amigos, casais e histórias que ainda arrancam risos — e saudade.

Por: Fábio Trancolin


No calendário, marcava 13 de junho de 1985. Era uma noite fria, mas de alma quente. Na porta do Colégio do Sol, em meio a mochilas nas costas e corações acelerados, um grupo de adolescentes embarcava rumo a uma viagem que atravessaria quatro décadas em lembranças: o destino era Lagoa Santa.

A excursão, inicialmente marcada para a Semana Santa, foi adiada por um bom motivo: o professor Agrest, querido por todos, precisou cuidar da mãe doente. Ninguém queria ir sem ele. Era um desses professores que ensinavam além do conteúdo — transmitiam entusiasmo, amizade e alegria. Decidimos juntos: com Agrest ou nada feito. A espera valeu a pena.


Na noite do embarque, alguns já iniciavam a comemoração. Selmo, Manoel e eu passamos em um bar da Presidente Vargas para “esquentar” o clima — e até compramos cigarro Galaxy, “especial para a ocasião”. Coisas da juventude...

A viagem seguiu pela BR-060 e GO-184 até Lagoa Santa. Ao chegar, a casa alugada era mais uma tapera do que um abrigo, mas serviu perfeitamente. O frio era cortante, um frio que, até hoje, nenhum dos presentes conseguiu esquecer — e que só foi enfrentado com cobertores finos, casacos improvisados e doses generosas de Velho Barreiro. Ao final, 49 garrafas vazias foram penduradas em uma árvore em frente à casa, como troféus de resistência juvenil.


As lembranças são muitas. Aloísio, o Japonês, tentou esconder uma farofa deliciosa feita por Dona Carmem, sua mãe — mas, cercado por mais de vinte esfomeados, teve que repartir. Um batom labial cor-de-rosa, “protetor contra o frio”, foi passado por alguns rapazes desavisados — inclusive pelo motorista. Não saía nem com reza brava. O irmão do Gato, “convidado por carona”, exagerou na cachaça e vomitou bem em cima do precioso casaco de carneiro de Célio. Pense num homem bravo.

Houve também o romance frustrado do Japonês com uma moça local, que o fez caminhar pela madrugada até dispensá-lo com um simples "Tchau". Manoel e Selmo, em ato de coragem ou loucura, resolveram atravessar o Rio Aporé a nado — em pleno junho, com água gelada de cortar o corpo.

Durante o dia, a lagoa era quente, mas o vento gelado exigia toalha aberta e amigo por perto ao sair. Homens e mulheres se revezavam na água ao som de um sino que marcava os turnos de hora em hora. À noite, todos se reuniam no bar do japonês — o único ponto de encontro da cidadezinha, que naquela época ainda era um vilarejo pouco estruturado.



No domingo, 16 de junho, todos pararam para assistir ao jogo da Seleção nas Eliminatórias da Copa. O Brasil venceu o Paraguai por 2 a 0, com gols de Casagrande e Zico. Agrest, flamenguista apaixonado, gritava como Galvão Bueno: “É craque, é gênio!”. Era a Seleção de Telê Santana, com Zico, Sócrates, Júnior e Falcão. Um time que sabia jogar — assim como nossa turma sabia viver.

E como se tudo isso já não bastasse para eternizar a viagem, três casais surgiram daquele fim de semana: Ailton e Ana Lúcia, Tom Jonas e Lúcia, Manoel e Marta — AA e MM ainda estão juntos com filhos e netos... Tom Jonas se foi...



Lembramos, sim. E sempre vamos lembrar. Porque há viagens que não terminam no fim de semana. Existem memórias que resistem ao tempo — permanecem jovens, vivas, como aquela turma, aquela noite gelada, a farofa dividida, o batom que marcava bocas e risadas, os maracujás do Mato Grosso do Sul... A cachaça contada em garrafas penduradas na árvore... o sino que marcava rodízio, como quem marca capítulos de uma história que não será esquecida.

Essa era a turma da excursão. Sinto saudades de cada um. Alguns ainda encontro, outros há muito não vejo. E três nos deixaram, retornando ao Plano Espiritual: Cigano, Baiano e Antônio Jonas — mas seguem conosco em cada lembrança.



Estavam lá: Adalto, Agrest, Ailton, Aloísio (o Japonês), Antônio Jonas, Celestino, Célio, Clayton, Edno (Baiano), Fábio Trancolin (o contador de histórias), Vilmar (o Gato, de olhos verdes, o “zoio de gato”), Gerson (Cigano), Jairinho, Manoel, Nilton César, Odair, Osmar e Selmo... e até o irmão do Gato, que pediu carona até Itajá, porém, seguiu viagem e ficou por lá... E, entre as meninas: Ana Lúcia, Aparecida, Márcia, Mariana Emília, Marina, Marta, Lúcia Helena e Zilma.

Quarenta anos depois, tudo isso continua vivo. Porque certas histórias não passam. Elas permanecem — como cicatriz bonita, como retrato antigo, como saudade boa.